29 de janeiro de 2021

Está na hora de legislar

Foto: Luiza Castro/Sul21

Antonio Escosteguy Castro (*)

Mesmo num momento de profunda crise econômica e alto nível de desemprego , a simples observação da realidade que nos cerca permite verificar que é cada vez maior o número de brasileiros e brasileiras que trabalham como motoristas de aplicativos e entregadores de mercadorias ( de moto e bicicleta) nas plataformas digitais. Em tempos de pandemia seria lícito concluir que pelo menos os entregadores teriam tido uma melhora de situação econômica, mas recente matéria da Folha ( Domingo,8/11) mostrou que cerca de 55% deles teve redução de rendimentos no período e que semelhante porcentagem trabalha habitualmente mais de 8 horas por dia para prover algum sustento. Isto se deve à desenfreada entrada de novos trabalhadores num setor que não tem qualquer regulação e que não garante quaisquer direitos.

A crescente precariedade deste trabalho levou à mobilização das categorias envolvidas, e os movimentos grevistas dos últimos tempos ( os conhecidos “ breques dos apps”) trouxeram esses temas para o centro da conjuntura política. O Congresso Nacional, por óbvio, não poderia ficar alheio a esse debate e hoje já há mais de 60 projetos de lei tramitando sobre tais assuntos e um deles ( o PL 4172/2020) de autoria do Dep. Henrique Fontana (PT/RS) , contou com a colaboração do escritório de advocacia que este autor integra (COP Advogados) em sua elaboração.

Não é tarefa fácil regular estas novas formas de organizar e prestar o trabalho. O parâmetro produtivo da 2ª Revolução Industrial, que marca o século XX , era o da automação dedicada. Foram os tempos do taylorismo/fordismo , de um modo de produção homogêneo que gerou o contrato de emprego e este encontrou na CLT sua expressão. O vínculo de emprego e a CLT são, portanto, filhos diretos da 2ª Revolução Industrial. A automação de base microeletrônica , com o fantástico desenvolvimento dos computadores , dos softwares, dos chips, dos robôs, é uma automação flexível , que muda o grau de autonomia da produção em relação ao trabalho humano, que foi substituído em inúmeros postos. As novas formas de produção , mais fragmentadas e singulares, fazem surgir novas formas de contratação , novas formas de organizar e prestar o trabalho , que serão menos rígidas que aquelas oriundas do binômio taylorismo/fordismo.

Apesar da velocidade espantosa deste processo e da hegemonia neoliberal verificada no mundo nos últimos 30 anos , não há um determinismo tecnológico. A mudança técnica terá as consequências que sua regulação incentivar e não necessariamente as relações de trabalho daí derivadas terão de ser precárias. Pode-se e deve-se criar um sistema protetivo às novas relações de trabalho , com base exatamente nos direitos fundamentais da Carta Magna e da ordem jurídica internacional.

Por isso nosso PL cria um novo tipo de contrato de trabalho , que parte de assegurar maior autonomia ao trabalhador (possibilidade de escolher seu horário de trabalho, de conectar-se e desconectar-se quando quiser, de recusar o serviço que não quiser e não sofrer qualquer tipo de penalidade ou consequência remuneratória em face disto) e lhes estende os parâmetros jurídicos e princípios da Constituição Federal e do conceito de Trabalho Justo ( fair work), desenvolvido pela OIT ( assegurando férias, 13º salário, salário mínimo, adicionais, cômputo da hora extra, seguro desemprego, aviso prévio, dentre outros). Nosso PL garante , ainda, o direito de greve, de negociação coletiva, a competência da Justiça do Trabalho e a indispensável filiação ao sistema previdenciário. Mas o projeto não elimina o vínculo de emprego, se praticado pela plataforma. Pelo contrário, amplia o conceito de subordinação, para açambarcar a subordinação por algoritmos destes novos tempos.

O fundamental é asseverar que se há uma nova forma de organizar e prestar o trabalho , com maior autonomia e menor subordinação do trabalhador, isto não o transforma em empreendedor ou microempresário. Ele é um trabalhador de novo tipo , com novos contratos, que devem ser protegidos legalmente , com base na Constituição Federal e na ordem jurídica internacional.

Não adianta , igualmente , propor soluções que não tenham a capacidade de se tornarem soluções gerais, remetendo a regulação desta prestação de serviços para o exame caso a caso e, portanto, para uma longa tramitação no Judiciário. A Lei deve incentivar que o ambiente econômico adira à solução protetiva e não à manutenção da informalidade.

Haverá muitos obstáculos para conceder quaisquer direitos a essas categorias super-exploradas . Exemplo disto foi a obstrução parlamentar do Partido Novo , maior expressão ultra-liberalismo no Congresso, que impediu, na última sessão de 2020, a aprovação de um PL do Deputado Ivan Valente (PSOL) que timidamente assegurava alguns direitos durante o período de pandemia. A super-exploração dos trabalhadores é a base do lucro destas big techs do transporte e entrega, e elas vão resistir de todas as formas.

Mesmo em nível municipal , onde recentemente tivemos eleições , podem ser tomadas medidas legais que melhorem a vida destes trabalhadores, submetidos a jornadas de trabalho longas e em precárias condições. A vereadora Denise Pessoa (PT- Caxias do Sul) apresentou o projeto de lei 92/2020, inspirado em legislação do Distrito Federal (PL 937/2020) que obriga a existência de uma política municipal para o trabalho em plataformas e determinando às empresas que mantenham pontos de apoio aos trabalhadores, onde estes disponham de local de descanso, sanitários, bebedouros, etc…

Já é mais do que tempo de o Congresso Nacional e as Câmaras Municipais de se debruçarem sobre estes temas, dotando o país de uma regulação eficaz e protetiva para estes trabalhadores.

(*) Advogado

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