31 de março de 2021

Tecnologia, ideologia e mundo do trabalho

Por Cinthya Bastos Ferreira

“Os algoritmos são produto de uma realidade social classista e dela não podem ser apartados. Isso implica dizer que estes nada mais são do que programas postos a serviço das corporações globais e capazes de processar um grande volume de dados que garantem condições renovadas de exploração da força de trabalho. Nesses termos, “a tecnologia da atualidade não é apenas ciência aplicada; ela é, na verdade, um emaranhado confuso de geopolítica, finança global, consumismo desenfreado e acelerada apropriação corporativa dos nossos relacionamentos mais íntimos””.

De acordo com Marcuse (1973), os meios de informação de massa encontram pouca dificuldade em legitimar interesses particulares como sendo gerais e representantes máximos da sensatez e da racionalidade. Contudo, sob o véu aparente da razão permanece a irracionalidade totalizante e totalitária da organização societária capitalista, visto que sua continuidade depende do aprofundamento de contradições que dentro dos seus próprios limites são insuperáveis, as quais subordinam a vida ao movimento predatório da acumulação do capital.

Por conseguinte, a investigação das alternativas históricas torna-se a pedra fundamental da constituição de uma teoria crítica da sociedade, ao viabilizar não só um diagnóstico do que aqui está posto como fruto da dinâmica do real, mas também a edificação de novos horizontes capazes de coordenar táticas e estratégias para a superação concreta do establishment em uma dialética em que a realidade informa a teoria e a teoria informa a prática.

Nesse sentido, Marcuse (1973) versa sobre dois pressupostos basilares da elaboração dessa crítica: o pressuposto de que a vida vale a pena ser vivida (ou, melhor dizendo, pode e deve ser tornada digna de ser vivida) e o pressuposto de que há possibilidades latentes de tornar a vida melhor, assim como modos e meios específicos através dos quais se podem realizar essas possibilidades, isto é, trazê-las à vida.

A problemática que se levanta diante disso é que a sociedade industrial contemporânea, ao configurar formas de vida e de poder que anuviam os antagonismos existentes (notadamente em função da complexificação morfológica da classe trabalhadora), revela-se capaz de incorporar a própria crítica, docilizá-la e torná-la rentável. Em outros termos, o capitalismo se instrumentaliza na contenção da transformação social, reconciliando as forças que se opõem ao sistema e desencadeando um redimensionamento desta oposição dentro de seus próprios marcos, pois esta passa a se assentar na manutenção e melhoramento graduais do status quo institucional, subsumindo a qualidade na quantidade.

A essa altura, as ponderações levadas a cabo por Luxemburgo (2018) quanto ao fato de nem toda luta por reforma ser reformista, desde que esta se constitua em um meio de se atingir ao fim da conquista do poder e da abolição das classes, contribuem para essa discussão, pois o que se coloca é que as vicissitudes do reformismo no enquadre contemporâneo envolve justamente o abandono da retórica e da pragmática revolucionárias e a restrição hegemônica da luta às fronteiras definidas pelo sistema capitalista. Logo, não são formas diferentes de se chegar ao mesmo fim, mas são centralmente fins outros.

Quanto a isso, devemos considerar que colocar-se além do instituído significa se localizar fora da gramática do capital, a única reiteradamente vinculada ao campo do possível. Por essas razões, a aceitação e a reprodução continuada das formas capitalistas, antes de indicarem que estas são “democráticas” e irrepreensíveis, dão vazão a eficácia da ocultação ideológica das relações sociais reais de produção e de dominação.

Entretanto, não se trata de uma adesão ao que está posto decorrente única e exclusivamente da sedução discursiva do capital e da presumida ingenuidade individual e coletiva. Há de se levar em conta que esse controle da subjetividade “só é operado de maneira eficaz dentro de um contexto de mercado de trabalho flexível, em que a ameaça de desemprego está no horizonte de todo assalariado” (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 229).

Com isso, revela-se a capacidade não só persuasiva, mas, sendo esta indissociável de seu substrato material, a capacidade também fundamentalmente coercitiva do sistema regido pelo capital, a ponto mesmo de este esgotar o que se designa liberdade no não impedimento de concorrência entre interesses privados ou na promessa de ascensão social como equivalente direto da ampliação do poder de compra condicionada a um mérito completamente alheio às condições concretas – e, como tal, apologético da desigualdade.

Desse modo, as necessidades humanas, como variáveis históricas, transmutam-se no capitalismo não só em consumo de mercadorias cuja marca é a abstração, mas em um consumismo, sobredeterminado pelo enlace entre produção e ideologia, que desconhece os limites postos pela natureza, já que esta transmuta-se, por sua vez, em mero recurso para a valorização do valor.

As consequências dramáticas desse padrão reprodutivo ganham como contrapartida a defesa ignóbil da compatibilidade entre preservação ambiental e desenvolvimento econômico na esteira do status quo, recorrendo ao consumo consciente como bandeira que, em última instância, responsabiliza e culpabiliza o indivíduo, omite seu caráter de classes e mantém intocadas suas raízes. Uma falsa solução a um problema que tampouco se pretende superar, sob o risco de ver a si mesmo, enquanto sistema, aniquilado.

Somado a isso, marketing e propaganda são levados a encontrar nesse contexto uma arena para a disputa das subjetividades, de modo tal que a mercadoria define o ser, faz de si mesma suporte de um estilo de vida e mobiliza identificações e idealizações as quais permitem a manipulação do desejo e sua domesticação no interior de uma visão de mundo orquestrada pelo capital: ser uma pessoa ecológica significa comprar mercadorias que se apresentam ao mundo com este título e são desde sua concepção direcionadas a este nicho de mercado. Em outras palavras, greenwashing – que no bom pretuguês (GONZALES, 1983) se diria BALELA.

Com isso, vê-se que, na sociabilidade capitalista, os seres humanos, para serem seres humanos, precisam ser, antes de tudo, compradores e vendedores, se inserirem em um mercado cuja marca é a impessoalidade e a alienação. O que o produto do trabalho humano conseguir no mercado vai determinar o que é esse ser humano: o sujeito passa a ser o resultado do trabalho, não o agente do trabalho, em uma inversão de meios e fins.

Na costura desses elementos, há de se considerar ainda a centralidade das tecnologias de informação e comunicação (TIC) na acumulação capitalista, de modo que a pretensa neutralidade da tecnologia na sociedade industrial contemporânea não se sustenta (MOROZOV, 2018), assim como o progresso em si mesmo não é compreensível desligado dos fins a que persegue e efetiva.

Nesse sentido, tem-se que o toyotismo e a era da acumulação flexível (ANTUNES, 2000), articuladas ao neoliberalismo enquanto quadro referencial político e ideológico, encontra justamente nas TIC o instrumento adequado para viabilizar a administração do processo de trabalho, tornando possível o controle na dispersão e facilitando a dissimulação das relações de assalariamento sob o predicado do trabalho autônomo e supostamente livre das amarras convencionais.

Desse modo, o padrão de reprodução do capital em sua forma histórica mundializada depende do desenvolvimento tecnológico, um desenvolvimento que significa subordinação do trabalho ao jugo do capital pela generalização da informalidade, da terceirização, da intermitência e da precarização. Isto é, frente a corrosão da seguridade social e dos direitos trabalhistas, por um lado, e a necessidade de arcar com a própria subsistência, por outro, a classe trabalhadora é capturada por um mercado de trabalho que progressivamente nega qualquer vínculo empregatício e se exonera de qualquer compromisso, apresentando a si mesmo enquanto mero mediador.

Quanto a isso, como pontuam Antunes e Filgueiras (2020), é preciso levar em conta que a recusa da condição de empregador como componente de um programa de gestão do trabalho não é um fenômeno inédito. No entanto, a utilização das TIC por empresas-aplicativos vem redimensionando essa realidade. De modo geral, trata-se de um movimento que conjuga continuidade e inovação. Continuidade, por ensejar um aprofundamento do trabalho atípico preexistente (intermitente, terceirizado, por conta própria, por demanda, etc.), a ponto de este assumir o lugar da tipicidade na contemporaneidade. Inovação, por lançar mão de mecanismos de vigilância e controle da força de trabalho até então impensáveis, os quais permitem o registro de todo o processo de trabalho independentemente de onde este se desenrole, bem como o subsequente direcionamento dos trabalhadores e das trabalhadoras de acordo com os objetivos empresariais, tudo sob o aparente comando de algoritmos isentos, pertencentes ao mundo da técnica e não dos interesses.

Todavia, longe de serem a encarnação da suprema e ideologicamente requerida neutralidade, os algoritmos são produto de uma realidade social classista e dela não podem ser apartados. Isso implica dizer que estes nada mais são do que programas postos a serviço das corporações globais e capazes de processar um grande volume de dados que garantem condições renovadas de exploração da força de trabalho. Nesses termos, “a tecnologia da atualidade não é apenas ciência aplicada; ela é, na verdade, um emaranhado confuso de geopolítica, finança global, consumismo desenfreado e acelerada apropriação corporativa dos nossos relacionamentos mais íntimos” (MAROZOV, 2018, p. 7).

Tendo isso em vista, a definição dos termos de funcionamento algorítmico não é alheia aos interesses corporativos, mas a intangibilidade dos algoritmos camufla sua ligação direta com estes interesses, tornando incompreensíveis os pressupostos exatos que determinam os comandos apresentados pelas plataformas, uma vez que os dados que orientam seu funcionamento tampouco são transparentes. Na articulação desses aspectos prevalece justamente a sujeição dos trabalhadores a regras que lhes são estranhas, inacessíveis e particularmente mortificadoras.

Mais do que isso, a intrusão algorítmica repercute no apagamento das fronteiras entre tempo de trabalho e tempo de vida, pois dados advindos desta última esfera são também amplamente catalogados e cruzados com informações do âmbito do trabalho, obstruindo com qualquer possibilidade de manutenção da privacidade (ADDAMS-PRASSL, 2020). Esta falta de delimitação se faz ver ainda pela consolidação do trabalhador sob medida (ABÍLIO, 2017) enquanto modelo por excelência do trabalho mediado por plataformas digitais ou uberizado. Em outras palavras, uma vez que este se caracteriza pela necessidade de fazer-se disponível integralmente, embora valorado apenas quando efetivamente utilizado – atendendo assim aos desígnios da reestruturação produtiva que se baseia na capacidade de responder às flutuações do mercado e de manter baixos custos de produção associados a alta produtividade –, tem-se que a vida se funde ao trabalho, embaralhando suas divisas.

Este trabalho por demanda, sem garantias e sujeito às variações do mercado, instaura um contexto de completa instabilidade, de modo que os supostos benefícios da flexibilização do trabalho se tornam os próprios grilhões da classe trabalhadora. O elogio da flexibilidade se realiza, mas para as empresas: para quem vive da venda do seu trabalho, ao contrário, a flexibilidade (autonomia para definir o quanto e quando trabalha) é apenas aparência que encobre a realidade de exploração do trabalho, visto que na prática vigora a imposição de trabalhar mais e trabalhar continuamente para garantir a própria subsistência e para cobrir os custos de manutenção dos instrumentos de trabalho.

Com isso, como enfatizam Franco e Ferraz (2019), assiste-se ao enraizamento de um modo particular de acumulação capitalista: uma vez que as empresas-aplicativos não se veem obrigadas a arcar com o contrato formal da força de trabalho e tampouco necessitam investir na maioria dos meios materiais que constituem o capital constante, o mais-valor apropriado se torna tão mais maximizado quanto mais vulnerável tornam-se seus “colaboradores” – e, nesses termos, “sem dúvida, o trabalho produz maravilhas para os ricos, mas produz privação para o trabalhador” (MARX, 2004, p. 82).

Por conseguinte, opera-se a transformação do trabalhador em parceiro autônomo e supostamente livre: sem patrão identificável, sem jornada de trabalho fixa, apenas movido pela urgência de arcar com sua reprodução, reentitulada pelo léxico empresarial empreendedorismo. Por esta via anuncia-se então a conversão da liberdade em uma nova e mais apertada roupagem da exploração do trabalho, alicerçada na ausência garantias, na sujeição completa à fantasmagoria dos algoritmos, na nebulosidade das fronteiras entre o que é e o que não é tempo de trabalho, na naturalização e transferência de riscos e custos, na incerteza como norma.

À vista disso, se do ponto de vista da técnica nos vemos rodeados de possibilidades de tornar a vida digna de ser vivida, do ponto de vista político-econômico assistimos a uma ofensiva sem pudores do capital. A capacidade presente no aqui e no agora de trabalhar menos e trabalhar tod@s não se traduz senão em sua antítese. A eficiência produtiva, senão em penúria. O elogio da mundialização como integração da aldeia global, senão em recrudescimento das tensões centro-periferia (OSORIO, 2019) e canonização do mantra livre circulação de capitais e rechaço de migrantes. Eis, portanto, a contradição que persiste: “quanto mais a tecnologia parece capaz de criar condições para a pacificação, mais são a mente e o corpo humano organizados contra essa alternativa” (MARCUSE, 1973, p. 36). Sendo assim, a soberania popular sobre a tecnologia só é pensável dentro de um quadro que a inclua na totalidade social que é a um só tempo seu fundamento e produto, o que passa pela urgência da pavimentação de uma práxis revolucionária.

REFERÊNCIAS

ABILIO, Ludmila Costhek. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados, São Paulo, v. 34, n. 98, p. 111-126, 2020.

ADDAMS-PRASSL, Jeremias. Gestão algorítmica e o futuro do trabalho. In: CARELLI, Rodrigo de Lacerda; CAVALCANTI, Tiago Muniz; FONSECA, Vanessa Patriota (orgs.). Futuro do trabalho: os efeitos da revolução digital na sociedade. Brasília: ESMPU, 2020.

ANTUNES, Ricardo. Fordismo, toyotismo e acumulação flexível. In: Adeus ao Trabalho? Ensaio sobre as metamorfoses e a centralidade do mundo do trabalho. São Paulo: Cortez, 2000.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaios sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

FILGUEIRAS, Vitor; ANTUNES, Ricardo. Plataformas digitais, Uberização do trabalho e regulação no Capitalismo contemporâneo. Contracampo, Niterói, v. 39, n. 1, p. 27-43, abr./jul. 2020.

FRANCO, David Silva; FERRAZ, Deise Luiza da Silva. Uberização do trabalho e acumulação capitalista. Cadernos EBAPE. RJ, Rio de Janeiro, v. 17, Edição Especial, p. 844-856, 2019.

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: SILVA, L. A. et al. Movimentos sociais urbanos, minorias e outros estudos. Ciências Sociais Hoje, Brasília, ANPOCS n. 2, p. 223-244, 1983.

LOUREIRO, Isabel (org). Rosa Luxemburgo e o protagonismo das lutas de massa. São Paulo: Expressão Popular, 2018.

MARCUSE, Herbert. A ideologia da sociedade industrial. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

MARX, Karl. Trabalho estranhado e propriedade privada. In: Manuscritos Econômico Filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004.

OSORIO, Jaime. O estado no centro da mundialização: a sociedade e civil e o tema do poder. São Paulo: Expressão Popular, 2019.

MOROZOV, Evgeny. Big Tech: a ascensão dos dados e a morte da política. São Paulo: Ubu, 2018.

* A autora é formada em Psicologia pela PUC-MG e graduanda de Ciências Sociais pela Universidade Federal de Alfenas.

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