Controle sobre os bancos, indispensável ao desenvolvimento e iniciado em 1930, jamais foi concluído. Na ditadura, concentrar o setor virou lei. Plano Real ajudou, desmantelando bancos públicos. Hoje, os cinco maiores fazem o país refém
Por Alessandro Octaviani, em A Terra é Redonda
Em maio de 2020, o ministro Paulo Guedes revelou sua visão do Brasil: “Duzentos milhões de trouxas sendo explorados por seis bancos”.1 Diferentemente de outras tantas afirmativas do ministro, parece que dessa vez ele chegou perto de acertar.
A concentração bancária brasileira é altíssima, superando os 80%. O FMI mapeia inúmeras experiências na faixa de 40%; os EUA em 2016 apresentavam concentração de 43%, que se elevou entre o ano de 2000 (28.06%) e 2008 (41.75%), quando eclodiu a crise financeira. Com a crise, o Estado norte-americano ordenou concentrações bancárias, mas dez anos depois o resultado era pouco mais de 40%. A China apresenta concentração bancária de 37% e a Índia de 36%. Nossa concentração bancária, como afirmou o Banco Central, é superada no mundo somente pela Holanda, cujos 5 maiores bancos detêm 89% dos ativos totais.2
Concentração bancária e sua disciplina jurídica: como chegamos até aqui?
Dado o caráter de “empresa colonial” e a fraqueza estrutural do Estado em relação aos proprietários de terra, a instrumentação monetária foi, durante muito tempo, um terreno no qual os particulares obtiveram, simultaneamente, enorme lucro e poder.
O Código Civil de 1916 assegurava (i) que as partes em determinado contrato poderiam pactuar livremente a moeda em que a obrigação seria cumprida (art. 947, §1º.) e (ii) que o estrangeiro portaria consigo o ordenamento de seu país, em caso de litígio (dado que o “elemento de conexão normativa” constante da Lei de Introdução ao Código Civil era a nacionalidade, ao invés do domicílio). Tal disciplina jurídica criava um ambiente no qual a moeda e os poderes/funções que ela classicamente engendra (meio de troca, reserva de valor e unidade de conta/valor) estavam tendencialmente (iii) longe do Estado e de uma política de desenvolvimento nacional e (iv) perto dos estrangeiros e operadores privados a eles conectados ou submetidos.
A partir da Revolução de 1930, com o Decreto nº 23.501/33 e o Decreto-Lei 4.657/42 (que estipulavam a obrigatoriedade do curso legal da moeda nacional e, como elemento de conexão, o domicílio), a instrumentação monetária passou a ser objeto de ação de um Estado nacional em busca de soberania econômica. Essa tentativa de tornar o sistema financeiro (i) nacional e (ii) útil aos fins do desenvolvimento jamais foi completada (assim como a tarefa da educação pública de qualidade para toda a população brasileira ou a transformação de nossa economia em industrial, e não meramente exportadora de matéria-prima).
A ditadura militar de 1964, consumindo mais um dos enlatados ideológicos dos EUA, postulava a necessidade de (i) o setor bancário concentrar-se, (ii) com cada unidade ganhando em escala, (iii) o que, segundo o conto de fadas, permitiria a redução dos custos operacionais globais da operação e, (iv) na ponta, traria a mágica consequência da redução da taxa de juros e (v) a almejada diminuição da pressão inflacionária. Assim, concentração bancária transformara-se, candidamente, em sinônimo de justiça social.
O Decreto-Lei 1.182 de 1971 criou a Comissão para Fusão e Aquisição de Empresas – Cofie, cujo objetivo era incentivar incorporações, aquisições e abertura de capital em setores considerados de “interesse nacional”. O objetivo de concentração bancária passou a ser alcançado: de 1967 a 1973, a quantidade de bancos diminuiu de 262 para 114, com mais de 148 bancos deixando de existir. A privatização dos postos de coletoria tributária (deixando sempre um gigantesco montante extra de dinheiro nos caixas bancários por diversos dias, até serem encaminhados ao devido destino estatal) foi somente um dos presentes da ditadura aos bancos que “ganhavam escala”, enquanto a propalada queda dos juros e da inflação, anteriormente anunciada, era solenemente esquecida.
Com os militares se recolhendo aos quartéis sob uma inflação altíssima lhes caindo nas costas, em dezembro de 1988 havia 104 bancos comerciais e 5 caixas econômicas em funcionamento; do total de bancos, 49 eram bancos privados (controlavam 56.85% dos ativos), 26 bancos sob controle estrangeiro (9.62% dos ativos) e 29 bancos públicos (21.55% dos ativos). Nesse mesmo ano, houve a promulgação da Constituição Federal, com pelo menos quatro comandos jamais deglutidos pelo mercado financeiro: (i) a auditoria da dívida externa (CF, ADCT, art. 26), (ii) a submissão jurídica do sistema financeiro aos fins do desenvolvimento nacional (art. 192, caput), (iii) a determinação constitucional dos juros (art. 192, par. 3º.) e (iv) a determinação para a existência de um ambiente verdadeiramente concorrencial (art. 192 e art. 170). É também do ano de 1988 a mudança normativa que autorizou a criação dos bancos múltiplos, que, revertendo a tendência do período anterior, elevou o número de bancos, chegando-se à marca de 244 em dezembro de 1994.
A partir do Plano Real, entretanto, a política de concentração bancária renovou sua força, com (i) o desaparecimento de bancos privados e (ii) a privatização de bancos estaduais (estes últimos, em 1996, correspondiam a 17,6% dos recursos do Sistema Bancário Nacional). O “Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento do Sistema Financeiro Nacional – Proer” e o “Programa de Incentivo à Redução do Setor Público Estadual na Atividade Bancária – Proes” foram articulados para organizar (i) fusões e incorporações de bancos (com vistas ao programa de estabilidade inflacionária) e (ii) diminuir ou eliminar a presença estatal direta na economia, seguindo empolgadamente as ordens do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional.3 Concentração bancária se tornava, agora, sinônimo de salvação nacional.
O Proes resultou na privatização de 9 instituições, gerando um gasto de R$ 61,4 bilhões para sanear os bancos privatizados; dos 64 bancos existentes, 41 foram privatizados, extintos ou transformados em agências de fomento. O “Programa de Fortalecimento das Instituições Financeiras Federais – Proef” criou a Empresa Gestora de Ativos – Emgea e atuou na reestruturação de bancos federais, através da troca de ativos de baixa rentabilidade e pouca liquidez por títulos públicos federais. No período FHC também buscou-se tornar proibitiva a abertura de bancos, erigindo barreiras legais a novas entradas, como a exigência de patrimônio líquido de 32% aos novos entrantes, enquanto dos bancos já existentes era exigido somente 8%.4
A política de concentração bancária também se expressou pelo bloqueio do CADE para controlar o setor bancário. Em 1997, o Bradesco estruturou a compra do Banco de Crédito Nacional – BCN, tendo sido a operação submetida apenas ao Bacen. Posteriormente, o CADE (i) entendeu-se competente, (ii) analisou a operação, (iii) decidiu pela ausência de efeitos deletérios à concorrência e (iv) aplicou multa, em razão da intempestividade da apresentação do Ato de Concentração.5 Tal interpretação deu início a uma longa batalha judicial, em que, fundamentalmente, os bancos, o Banco Central e os sucessivos governos federais buscaram excluir o CADE do controle jurídico do setor bancário, buscando, ironicamente, o monopólio regulatório do Bacen, como dava provas o “Parecer Vinculante” da Advocacia-Geral da União de 2001.6
A tentativa de consolidar o monopólio regulatório para uma autoridade notoriamente alinhada aos seus regulados, como o Banco Central, resolveu-se, ainda que timidamente, somente em 2018, quando CADE e Bacen firmaram Memorando de Entendimentos que disciplinou a necessidade de autorização por ambos os órgãos, salvo em casos de Atos de Concentração que “indiquem haver riscos relevantes e iminentes à solidez e à estabilidade do SFN”.7
A intensa busca da concentração bancária pela ditadura e pelos governos que lhe sucederam foi alcançada: segundo o Bacen, somente 40% dos bancos que funcionavam em dezembro de 1988 sobreviveram até 2000, quando o sistema bancário brasileiro era composto por 191 bancos e 1 caixa econômica, sendo 16 bancos públicos (24,33% dos ativos), 104 bancos privados nacionais (42,56% dos ativos) e 71 bancos sob controle estrangeiro (33,11% dos ativos). Em 2019, a concentração bancária no país atingiu seu píncaro, concretizando a vitória dos interesses concentracionistas que manusearam a ditadura e os governos seguintes: os cinco maiores bancos do país passaram a deter 81% do mercado bancário comercial. Em 2020, com tal poderio e extrema capacidade de subordinar a economia brasileira aos seus ditames, mesmo diante da pandemia e da baixa histórica da Selic, os cinco maiores bancos lucraram R$ 61 bilhões. No mesmo ano, entre as cinco empresas de capital aberto com maior lucro, quatro foram bancos: (i) Itaú Unibanco (R$ 18.9 bilhões); (ii) Bradesco (R$ 16.5 bilhões); (iii) Santander (R$ 13.4 bilhões); e (iv) Banco do Brasil (R$ 12.6 bilhões).8
O “teorema de Mateus”: a tomada da Dívida Pública e o não-compartilhamento de eficiências
A popular remissão à mensagem bíblica do livro de Mateus, 13:12 (“A quem tem será dado, e este terá em abundância. De quem não tem, até o que tem lhe será retirado”), remete à “causação circular”: quem tem poder tende a aumentar seu poder; quem não tem poder tende a diminuir o pouco que tem. Com o aumento de seu poder, os bancos brasileiros passaram a aumentar seu poder…
O Relatório Anual da Dívida – RAD de 2020 aponta que a Dívida Pública Mobiliária Federal interna é detida agora majoritariamente por instituições financeiras, com (29,6%), seguidas pelos fundos (26%), previdência (22,6%), não residentes (9,2%), governo (3,8%) e seguradoras (3,7%). Tal participação passou do terceiro lugar, em 2018 (22,7%), para o primeiro, ao mesmo tempo em que a Dívida Pública Federal – DPF encerrou o ano de 2020 atingindo o recorde histórico de aproximadamente R$ 5 trilhões e a relação Dívida Bruta – PIB chegou a 89,3%.9
O domínio da dívida do Estado busca ser o domínio do próprio Estado, e os bancos ficaram “mais donos de uma dívida que ficou maior”: “A quem tem será dado, e este terá em abundância”.
Na outra ponta da “tragédia de Mateus” encontram-se os tomadores da principal mercadoria que os bancos deveriam oferecer: crédito bancário a preços baixos para instrumentalizar o desenvolvimento econômico brasileiro. Aqui, o oligopólio bancário criou concentração sem compartilhamento de eficiências finalísticas com o consumidor (ao contrário de eficiências instrumentais, como alta informatização ou segurança bancária, cujo sentido é de evidente autoalimentação para o próprio conglomerado financeiro gerador da eficiência). Mesmo com a Selic em baixa histórica, próxima de 2%, não se verifica tal paridade nos juros praticados pelos bancos no varejo e a taxa no rotativo do cartão de crédito permanece em astronômicos patamares, na casa dos 300%.10 O outro lado da onda revela-se cruamente: “De quem não tem, até o que tem lhe será retirado”.
Nessa situação, concentração bancária transforma-se em ameaça à própria democracia.
Submeter os bancos à Ordem Econômica, e não o inverso
A concentração bancária no Brasil é um estado factual em flagrante contrariedade à Ordem Econômica Constitucional e aos comandos emergentes dos enunciados dos artigos 3º. e 192 (que determinam o desenvolvimento nacional como objetivo do país e do sistema financeiro, e não a situação de subordinação do país a seus bancos), art. 219 (que determina ser o mercado interno um patrimônio nacional, voltado ao desenvolvimento econômico-social e à autonomia tecnológica, e jamais um patrimônio jurídico instrumental ao enriquecimento disfuncional e autocentrado dos bancos) e art. 170 (que determina a existência de efetiva concorrência, e não a ocorrência de alinhamentos estratégicos fáceis, incapazes de contribuir para o aumento de complexidade e solidariedade econômica).
A interpretação/aplicação da Ordem Econômica pelos órgãos de controle e fomento abre ao menos três caminhos para a emancipação da sociedade brasileira em relação ao atual quadro de dominação banqueira.
O primeiro é colocar os bancos estatais no seu devido lugar — submetidos à Constituição Federal —, sindicando-os a (i) ofertar crédito com mais acesso e em melhores condições, voltado aos pequenos e médios negócios, à inovação tecnológica, à cultura, à agricultura e à infraestrutura, sem buscar alinhamento com os bancos privados, desorganizando o consenso, gerando incessante pressão concorrencial, e (ii) garantir o financiamento de longo prazo para os principais projetos estratégicos de desenvolvimento do país. O segundo é a manufatura institucional de um ecossistema financeiro verdadeiramente concorrencial, fertilizado e tonificado com (i) cooperativas de crédito setorizadas, (ii) instituições financeiras especializadas, locais e regionais, e (iii) a modulação do mercado de capitais e das fintechs funcionalizados para competir de fato com o oligopólio banqueiro, e não alinhados estrutural e tacitamente a suas gordas margens. O terceiro caminho diz com a generalização de “regra prudencial concorrencial” para todos os futuros casos submetidos ao CADE e ao Bacen (membros da Administração indireta cujo único fim e razão de existência é a concretização da Constituição Federal) envolvendo bancos: (i) realizar análises de mercado que tomem como premissa o dever, cogente, de Ordem Pública Econômica, de obter desconcentração bancária; (ii) vetar novas concentrações bancárias que não assumam “compromisso de desempenho de geração de eficiências finalísticas compartilhadas com os consumidores” (compromisso de desempenho para diminuir, com enfoque estrutural e de comportamento, o preço do dinheiro); e (iii) um programa de investigação de condutas anticoncorrenciais que, além das penas pecuniárias, tenha como núcleo de eficácia a aplicação de remédios estruturais, viabilizadores de desconcentração e de novas entradas.
Em nossa Ordem Econômica Constitucional, os bancos servem à Nação, e não o inverso. Os órgãos da Administração devem concretizar a Constituição, e não relatórios da OCDE, da ICN ou outras entidades voltadas à captura da capacidade e imaginação institucional dos países periféricos. A tarefa da organização jurídica dos mercados bancários ainda está por ser feita e é tão relevante quanto à da educação, da saúde ou da infraestrutura: trata-se, afinal, para relembrar o Mestre, da construção interrompida da Nação.11 Nessa perspectiva, desconcentração bancária torna-se civilização.
Alessandro Octaviani, ex-membro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE), é professor da Faculdade de Direito da USP. Autor, entre outros livros, de Recursos genéticos e desenvolvimento (Saraiva).