Para que um magistrado mereça o título de juiz deve poder tomar decisões de maneira absolutamente imparcial, inclusive para “absolver quando todos — imprensa, forças políticas e opinião pública — pedirem uma sentença condenatória e condenar quando todos pedirem a absolvição”. Quando toma partido, principalmente se tem objetivos políticos, o juiz perde a capacidade de julgar os fatos apresentados no processo de maneira equidistante e pratica populismo judicial, que é “a forma mais perversa de populismo”.
É a opinião do professor italiano Luigi Ferrajoli, principal responsável pelo desenvolvimento da teoria do garantismo penal. Em entrevista exclusiva à ConJur, feita por e-mail, o também filósofo afirmou que não existe combate eficaz à corrupção fora das balizas do devido processo legal. Disse ainda que a ideia defendida por alguns setores do Ministério Público e do Judiciário brasileiro de que existe no país um hipergarantismo é o sinal de “uma grave regressão civil e cultural”.
De acordo com Ferrajoli, garantias penais e processuais não são apenas garantias contra a arbitrariedade. “São a principal fonte de legitimação da jurisdição.” Para o professor, não é adequado comparar a operação “lava jato” com a “mãos limpas” [mani pulite] italiana: “nada nos permite apresentar hipótese de qualquer falta de imparcialidade dos juízes italianos e dos próprios promotores ou, pior, sua busca pelo consentimento popular ou da imprensa”.
Luigi Ferrajoli também criticou a ideia de executar a pena de prisão antes do trânsito em julgado da condenação e disse que é salutar a ideia de fixar uma quarentena para que juízes possam ocupar cargos públicos depois de deixar a magistratura, para que se evite o uso política da toga. “É o mínimo que se pode fazer depois deste gravíssimo escândalo, que provocou uma distorção patológica da dialética política e desviou o curso normal da democracia brasileira”, respondeu, em referência ao fato de o ex-juiz Sergio Moro ter aceitado compor o governo Jair Bolsonaro, que chegou ao poder em 2018 virtualmente beneficiado pelas decisões do então juiz de Curitiba.
Juiz por nove anos, Ferrajoli deixou a magistratura em 1975 para se dedicar exclusivamente à carreira acadêmica. Professor de Filosofia do Direito e de Teoria Geral do Direito, publicou “Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal”, obra que o fez reconhecido internacionalmente e que sustenta seu pensamento de que sem garantias penais não há Justiça possível. Aos 80 anos, é um dos mais requisitados pensadores do Direito da atualidade.
Além da entrevista, o professor Ferrajoli enviou à ConJur artigo em que elenca dez regras de ética judicial [clique aqui e aqui], escrito a partir de uma palestra que proferiu na Escola Italiana de Magistrados.
Leia a entrevista
ConJur — O Supremo está às voltas com recursos que podem provocar uma reviravolta em muitos dos processos que, em conjunto, foram batizados de operação “lava jato”. O exemplo mais visível é o do ex-presidente Lula, que depois de passar 580 dias preso teve condenações anuladas porque o juiz que o condenou foi julgado incompetente e suspeito. É possível criar mecanismos mais eficientes de controle para evitar que situações como essas se repitam?
Luigi Ferrajoli — Os mecanismos de controle devem ser oferecidos por códigos de processo penal. Em primeiro lugar, seria necessário prever a interposição de recurso imediato a um juiz para ordenar a transferência dos autos para o Ministério Público competente, logo que o interessado tenha conhecimento do processo instaurado por procurador incompetente. Em segundo lugar, em casos como o do processo contra o presidente Lula, o instituto da recusa do juiz é auxiliado pela evidente falta de imparcialidade: nesse caso claramente atestada não apenas pelas comunicações do juiz Moro aos promotores, que vieram recentemente à luz, mas ainda antes, pelas antecipações públicas de julgamento com as quais ele expressou repetidamente, antes da sentença, sua convicção da culpa do acusado.
ConJur — O que o senhor acha da ideia de antecipar do cumprimento de pena de prisão nos casos de condenações em que ainda cabe recurso. Ou seja, antes do trânsito em julgado?
Ferrajoli — Seria uma violação macroscópica do princípio da presunção de inocência até a sentença definitiva. Por outro lado, a utilidade de tal medida não é compreendida. Se o condenado não foi privado de liberdade por motivos cautelares na fase preliminar, não é claro que outros motivos poderiam justificar tal antecipação da pena após a sentença. O único efeito perverso dessa antecipação seria um pesado condicionamento com sentido acusatório do julgamento do recurso ou, em todo caso, da decisão final.
ConJur — Uma lei sancionada no começo do ano passado — e que não foi implementada porque suspensa pelo presidente do STF — criou a figura do juiz das garantias. Trata-se de um juiz que controlaria os atos de investigação e instrução processual, mas não seria apto a sentenciar o processo. O objetivo é impedir que o juiz que decidirá o destino do réu se contamine com a produção de provas. O senhor acha que essa é uma boa fórmula?
Ferrajoli — Parece-me uma excelente proposta. Grosso modo, corresponderia, na Itália, ao nosso juiz para as investigações preliminares. Seria a figura de um juiz que se pronunciasse sobre todos os vícios do processo, a começar por aqueles em relação ao que foi dito em resposta à primeira questão.
ConJur — Conversas vazadas entre procuradores e o juiz Sergio Moro, que comandou a “lava jato”, mostraram que sob o discurso de combate à corrupção se escondiam práticas, no mínimo, antiéticas. Como impedir que a proximidade entre juízes e membros do Ministério Público contamine o processo?
Ferrajoli — Separando radicalmente as duas figuras. Fixando também, juntamente com a recusa do juiz, a previsão como crimes, ou pelo menos como infrações disciplinares graves, de conversas como as que vazaram entre o juiz Moro e os órgãos do Ministério Público ou outras manifestações semelhantes de preconceito e partidarismo acusatório.
ConJur — O juiz Moro aceitou ocupar um lugar no governo do candidato virtualmente beneficiado por suas decisões. Há no Brasil projetos que criam um prazo de quarentena a ser cumprido para que juízes possam ocupar cargos políticos após deixar a magistratura. O senhor acha que essa é uma boa ideia?
Ferrajoli — É o mínimo que se pode fazer depois deste gravíssimo escândalo, que provocou uma distorção patológica da dialética política e desviou o curso normal da democracia brasileira.
ConJur — O senhor acredita que é possível impedir que o processo penal se transforme em uma arma política?
Ferrajoli — Não é fácil formular a hipótese de garantias processuais específicas contra tal perigo; também porque uma verdadeira exploração política de julgamentos criminais nem sempre é evidente e documentável. Na Itália, por exemplo, há muitos anos, sempre que um expoente político é indiciado — a começar pelas acusações de Silvio Berlusconi —, a imprensa solidária a ele grita com a “conspiração judicial” ou com a “justiça politizada”. Penso que a não exploração política de um processo penal pelos juízes está confiada, sobretudo, a uma ética judicial rigorosa. Além das possíveis sanções disciplinares, haveria uma severa censura — por parte da imprensa, da opinião pública e da cultura jurídica — de todas as formas de liderança judiciária. Para esse fim, propus repetidamente uma série de regras éticas. Por último, por ocasião de uma palestra na Escola Italiana de Magistrados, propus dez regras de ética judicial (clique aqui e aqui para ler).
ConJur — Muitos comparam a chamada operação “mãos limpas” italiana com a “lava jato” brasileira. É possível fazer paralelos entre as duas operações?
Ferrajoli — Acho que não. Certamente, mesmo nas investigações italianas denominadas “mãos limpas”, houve uma queda nas garantias de um julgamento justo: em primeiro lugar, o uso da prisão preventiva do acusado para obter a confissão e, acima de tudo, a colaboração com o Ministério Público através da indicação de outras pessoas. Mas as diferenças são enormes. As evidências então reunidas contra os acusados eram, em geral, incomparavelmente mais convincentes do que as apresentadas contra o presidente Lula. Acima de tudo, então, absolutamente nada nos permite apresentar hipótese de qualquer falta de imparcialidade dos juízes italianos e dos próprios promotores ou, pior, sua busca pelo consentimento popular ou da imprensa.
ConJur — Há quem acredite que respeitar à risca a garantia ao devido processo legal e ao direito de defesa é ser leniente com a corrupção. O senhor acredita que é possível combater a corrupção sem o respeito ao devido processo legal?
Ferrajoli — O respeito ao devido processo legal, do qual decorre um julgamento justo, é a única forma eficaz de combater a corrupção. As garantias do devido processo, de fato, não são apenas garantias do cidadão contra a arbitrariedade e os abusos judiciais. São também, e acima de tudo, garantias da verdade. O ônus da prova acusatório, a presunção de inocência até prova em contrário, os direitos da defesa, a publicidade do processo de investigação e a imparcialidade dos juízes nada mais são do que a tradução em normas jurídicas de princípios elementares da lógica indutiva.
ConJur — Alguns setores do Ministério Público e do Judiciário brasileiro passaram a falar que no Brasil existe um hipergarantismo. Cunharam esse termo para dizer que se prestigia o garantismo ao máximo em detrimento da punição de criminosos. O que o senhor acha dessa expressão?
Ferrajoli — É o sinal de uma grave regressão civil e cultural. As garantias penais e processuais não são apenas garantias de liberdade e verdade contra a arbitrariedade. São a principal fonte de legitimação da jurisdição e também, com um aparente paradoxo, o principal fator de eficácia da intervenção judicial. Na verdade, são as garantias que geram a maior assimetria entre a incivilidade do crime e a civilização do direito: uma assimetria que, a meu ver, representa o principal fator de deslegitimação moral e isolamento social e político do desvio e, portanto, de eficácia primária do direito penal. É por causa do desaparecimento dessa assimetria que os sistemas punitivos degeneram em sistemas de máximo direito penal, ao mesmo tempo maximamente aflitivo e maximamente ineficiente.
ConJur — O senhor acredita é possível garantir a isenção e a justiça em julgamentos penais nos quais há publicidade opressiva?
Ferrajoli — A publicidade da sentença, em nossa tradição processual, foi instituída como garantia do julgamento correto e dos direitos dos acusados, como alternativa ao sigilo que caracterizava o antigo processo inquisitorial. Na sociedade do entretenimento de hoje, está acontecendo exatamente o oposto. Também aqui há um problema de deontologia, neste caso do jornalismo: o respeito devido ao investigado, bem como aos juízes, e a concepção da instauração do processo penal como garantia de defesa do investigado, e não como uma condenação. A imprensa, por outro lado, está sempre em busca de escândalos, mesmo ao custo de construir monstros para expor ao pelourinho público.
ConJur — Há quem afirme que o garantismo se opõe à eficiência do processo penal. O que o senhor pensa dessa ideia?
Ferrajoli — É uma ideia totalmente errada. Garantir nada mais é que o cumprimento das garantias estabelecidas pelas mais avançadas leis e constituições: garantias que foram concebidas justamente para fazer do processo penal um meio crível de apuração da responsabilidade penal. Como disse ao responder à nona pergunta, o cumprimento dessas garantias é, portanto, um fator de eficiência, bem como de justiça. Garante a imunidade dos inocentes contra punições injustas e a condenação dos culpados, em vez de criar bodes expiatórios fáceis.
ConJur — O STF sofre ataques, cada vez mais pesados, sempre que toma decisões impopulares, mas garantistas. Como evitar que juízes se dobrem à voz das ruas em detrimento das garantias do devido processo legal?
Ferrajoli — O populismo judicial, de que a campanha acusatória contra o presidente Lula foi a manifestação mais escandalosa, é a forma mais perversa de populismo. O populismo político, que é também uma perversão da democracia representativa, visa, pelo menos, através da demagogia, a aquisição do consenso eleitoral, que ainda é a fonte de legitimidade da política. Ao contrário, o populismo judicial trai a fonte de legitimidade da jurisdição, que é a apuração imparcial da verdade, consequência de sua independência de julgamento. Um juiz que merece o nome de “juiz” deve poder com base na avaliação imparcial dos atos, absolver quando todos — imprensa, forças políticas e opinião pública — pedirem uma sentença condenatória e condenar quando todos pedirem a absolvição.
*A entrevista foi gentilmente traduzida para a ConJur por Paola Ligasacchi, jornalista, advogada e mestre em Estudos Sociais e Políticos Latinoamericanos pela Universidade Alberto Hurtado, em Santiago do Chile.