Carlos Ominami (*)
Chile, o tigre da América Latina, o país da transição modelo dos anos 90 segue em plena ebulição. As turbulências começaram com as mobilizações dos estudantes secundaristas em 2006, prosseguiram nas grandes mobilizações dos estudantes universitários em 2011 e culminaram com a revolta ou o estouro de outubro de 2019.
Os acontecimentos mais recentes, o plebiscito de outubro de 2020 e as eleições de 15/16 de maio deste ano são o resultado direto das tendências que subjazem ao estouro. No plebiscito de outubro de 2020, as forças conservadoras já tinham sofrido uma sonora derrota. A opção para rejeitar a nova Constituição alcançou apenas 20% dos votos.
Nas eleições de maio, a coalizão da direita unida manteve essa porcentagem, elegendo somente 37 representantes (em um total de 155), muito longe do um terço (52) que lhe daria uma minoria com poder de veto a decisões que devem ser tomadas por dois terços da Constituinte. A direita sofreu diretamente o castigo pela ação de um governo que, advertido do profundo mal-estar social, mostrou uma grande insensibilidade e mesquinhez no manejo social da crise sanitária.
Mas a crise chilena é muito mais profunda. Os resultados das recentes eleições representam também uma forte sanção aos partidos de centro e de esquerda que constituíram a base da Concertação que governou o Chile durante quatro períodos consecutivos encabeçados por Alwyn, Frei Ruiz Tagle, Lagos e Bachelet. Nas eleições de maio, o outrora grande Partido Democrata Cristão obteve só dois constituintes, o Partido pela Democracia três e o Partido Radical, um. Com 15 representantes eleitos, o Partido Socialista resistiu melhor, sem ter obtido tampouco uma grande representação.
Por outro lado, aparecem como vencedores os partidos mais à esquerda, o Partido Comunista e a Frente Ampla, especialmente este último que obteve 21 representantes e conquistou importantes vitórias em grandes municípios como Maipú, Ñuñoa e Valdivia. Já o PC, encabeçado por uma jovem militante comunista, conquistou a emblemática Santiago.
Agora, a grande novidade dessa jornada foi a irrupção dos movimentos sociais que apresentaram listas de candidatos independentes, constituídas por figuras completamente desconhecidas em nível nacional. Entre as diversas listas de independentes destacou-se a chamada “lista do povo” que, sozinha, obteve 29 convencionais. Ela constitui a representação mais clara e direta da “primeira linha” que conduziu as manifestações que se seguiram ao estouro de 18 de outubro. Um movimento que não tinha rostos conhecidos terá, a partir desta eleição, lideranças que terão que assumir responsabilidades na condução do setor.
Os resultados eleitorais confirmam uma tendência maior que vinha se manifestando com muita força: a crítica às elites, aos elencos associados à direção política do país durante as últimas décadas. Na realidade, esse sentimento se estende a todas as elites, empresariais, religiosas, militares, mas se expressou com força contra a elite política exposta diretamente às sanções eleitorais.
Cabe também destacar uma dimensão geracional que está produzindo uma substituição radical dos antigos representantes por novas figuras, muitas delas entre 30 e 40 anos, com escassa experiência política prévia e, por isso mesmo, não contaminadas pelo exercício do poder.
A incerteza maior
Predomina entre os 155 representantes eleitos uma certa fragmentação. Ela alimenta a incerteza a respeito de seus resultados. É um fato muito positivo que a direita não tenha alcançado o terço que lhe teria permitido se constituir como uma minoria com capacidade de veto. E pelo tipo de campanha, mais as as declarações de muitos candidatos e candidatas, é possível antecipar que se alcançará o quórum de dois terços para aprovar um conjunto muito substantivo de novas normas constitucionais em matéria de novos direitos sociais, igualdade de gêneros, desprivatização das águas, proteção ambiental, regionalização ou regime semi-presidencial, para citar algumas das mais importantes.
Não são, por conseguinte, os resultados da Constituinte que representam o principal fator de incerteza. É a governabilidade posterior o que está em questão. O processo chileno em curso tem a estranha particularidade de desenvolver-se em paralelo com uma eleição presidencial. Mas o novo presidente será eleito em novembro próximo e deverá prestar juramento em março para respeitar uma Constituição moribunda.
Caberá ao novo presidente colocar em prática a nova Constituição. O resultado desta eleição é, hoje, de difícil prognóstico. No momento, as pesquisas mostram que os candidatos melhor posicionados são Daniel Jadue, do Partido Comunista, e Joaquin Lavin, da União Democrática Independente (UDI), um dos principais partidos de direita. Seria um grande contrsasenso que a direita derrotada no processo constituinte fosse escolhida para colocar em marcha a nova Constituição. Uma situação desse tipo poderia significar um longo tempo de instabilidade e ingovernabilidade.
Por outra parte, em qualquer país e sobretudo em um com a história do Chile é difícil imaginar o triunfo e um governo presidido por um dirigente comunista que mantém uma grande fidelidade à ortodoxia marxista leninista e que não faz grandes esforços por ampliar sua base de sustentação. Para além dos avatares eleitorais, o principal problema que enfrenta o Chile é a ausência de um bloco social e político transformador que agrupe uma maioria nacional.
A Concertação de partidos pela democracia que surgiu das lutas contra a ditadura conseguiu constituir-se em um bloco pelas mudanças que derrotou politicamente à ditadura e deu quatro governos sucessivos ao Chile. Essa coalizão não foi capaz de superar o desgaste próprio do exercício do poder e foi perdendo progressivamente sua capacidade de transformação. Ela já vinha experimentando um acelerado processo de decadência e o estouro social terminou de sepultá-la.
Com o fracasso da Unidade Popular aprendemos que não é possível, em uma democracia, um processo de transformações profundas sem contar com uma maioria social e política capaz de sustentá-lo. Cinquenta anos depois o desafio de construir uma força transformadora está mais uma vez colocado e o futuro do projeto progressista depende crucialmente de sua resolução. Os meses daqui até as eleições presidenciais de novembro e dezembro próximos serão decisivos neste plano.
(*) Economista, ex-ministro da Economia do Chile.
Tradução: Marco Weissheimer