A Associação Juízes para a Democracia, entidade de magistradas e magistrados voltada à defesa dos direitos humanos e da democracia, vem a público externar sua profunda indignação, tristeza, perplexidade e repúdio à violência institucional praticada por profissionais da área de saúde, pelo Ministério Público e pelo Poder Judiciário do Estado de Santa Catarina, contra uma criança de 11 anos, grávida após ter sido vítima de estupro, e que teve o seu direito ao aborto legal negado, em flagrante afronta à Constituição Federal, ao Estatuto da Criança e do Adolescente, ao Código Penal, à Lei da Escuta Protegida e aos Tratados e Princípios Internacionais de Direitos Humanos.
Segundo dados da UNICEF no relatório “Panorama da Violência Letal e Sexual contra Crianças e Adolescentes no Brasil”, entre 2017 e 2020 foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam 62 mil das vítimas – ou seja, um terço do total.
É papel institucional do Estado, por meio de seus serviços de saúde, do Poder Judiciário e do Ministério Público garantir a concretização de medidas que protejam a dignidade, a integridade física e psíquica, e a vida de crianças e adolescentes.
O direito ao aborto legal, em hipóteses de vítimas de estupro e de risco de vida à gestante, são assegurados por uma miríade de normas, desde a Convenção dos Direitos Humanos da ONU, do Pacto de San José da Costa Rica, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher – CEDAW, da Convenção de Belém do Pará, da Convenção contra a Tortura e da Convenção sobre os Direitos da Criança, todos incorporados ao bloco constitucional brasileiro por força do artigo 5º, § 2º da Constituição Federal. Na perspectiva interseccional, crianças e adolescentes vítimas de discriminações múltiplas são protegidas pelos preceitos da Convenção Interamericana contra o Racismo, incorporada à Constituição Federal com “status” de Emenda Constitucional (Decreto nº 10.932/2022). No plano infraconstitucional, o aborto legal no caso de gravidez resultante de estupro está consagrado no art. 128, II do Código Penal desde 1940. Em tais casos, sequer seria necessária a autorização judicial, o que evidencia a violação dos direitos humanos da criança pela instituição médica, que se negou a realizar o procedimento.
Mas, não bastasse a costumeira violação, pelas instituições de saúde, dos direitos humanos à vida, à integridade física e psicológica e à dignidade humana, crianças e adolescentes são habitualmente constrangidas durante os procedimentos judiciais. Importante que seja consignado que o sistema de garantias de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência estabelecido pela Lei 13.431/17, naquilo que se refere à escuta especial e qualificada, pretende garantir que a vítima de violência tenha a sua dignidade preservada e não seja revitimizada pelo Estado durante a tramitação de ação judicial, revivendo a violência sofrida, dessa vez, institucionalmente. O depoimento deve ser colhido por profissionais especializados, que esclarecerão a criança ou o adolescente sobre a tomada do depoimento especial, informando-lhe seus direitos e os procedimentos a serem adotados e planejando sua participação. Também deve ser assegurada à criança ou ao adolescente a livre narrativa sobre a situação de violência, podendo o profissional especializado intervir quando necessário. O mesmo sistema de garantias estabelece que a criança deve ser prioridade absoluta, ter considerada a sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, receber um tratamento digno e abrangente e ser protegida contra qualquer tipo de discriminação. Deve, ainda, receber assistência jurídica e psicossocial especializada, que facilite a sua participação e a resguarde contra comportamento inadequado adotado pelos demais órgãos atuantes no processo.
A conduta de juízes e juízas em audiência que não observam todos esses preceitos e submetem crianças e adolescentes a procedimentos inquisitórios, em total desrespeito à Lei do Depoimento Especial (Lei nº 13.431/2017), chegando ao ponto de em muitas situações encaminhar a vítima para um abrigo, separando-a da família e, ainda, aliciar a vítima a abrir mão de seu direito ao aborto legal com a finalidade de instrumentalizar seu corpo infantil para servir à reprodução e entrega do nascituro à adoção encerra múltiplas camadas de violência institucional ou, quiçá, de tortura por agentes de Estado.
Cabe ainda destacar que o CNJ editou: 1) o Protocolo do CNJ de Julgamento com Perspectiva de Gênero (Recomendação CNJ nº 128, de 15/12/2022) e, 2) a Recomendação CNJ nº 123, de 07/01/2022, que recomenda a todos os órgãos do Poder Judiciário brasileiro a observância dos tratados e convenções internacionais de direitos humanos e o uso da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos. Tais recomendações são plenamente aplicáveis em casos como esse.
Não se pode ignorar, ainda, que o sigilo dessas audiências existe exatamente para proteger as crianças e adolescentes, não para proteger juízes, juízas, promotores ou promotoras; a divulgação do ato revelou-se como medida excepcional de proteção dos direitos da menina, ou seja, por justa causa, de forma lícita, não reprovável, não censurável e absolutamente necessária, até mesmo em legítima defesa dos direitos humanos da vítima da violência institucional praticada.
Assim, a AJD espera uma profunda autocrítica do sistema de Justiça e que, a partir deste fatídico evento, sejam buscados os meios de acolhimento e reparação das vítimas da violência institucional infligida e, ainda, o aperfeiçoamento de discursos, práticas e procedimentos, a fim de que fatos dessa natureza nunca mais ocorram e os direitos humanos de crianças e adolescentes grávidas, vítimas de estupro, sejam integralmente observados e efetivados.