por Juan Manuel Domínguez e Paulo Ferrareze Filho
Desde que existe cultura e linguagem, ainda que na sua expressão mais rústica, tentamos definir o que é a verdade e qual a sua relação com a religião. Afinal, quê é isto a religião? O que permitimos, normatizamos e consideramos religioso e o que consideramos ofensivo e profano contra nossa forma mais arcaica de relação com o sagrado?
Para Friedrich Nietzsche, inspirado nos pré-socráticos, a natureza, nós mesmos e tudo o que nos rodeia é mutável e irregular. Porém, precisamos estruturar essa irregularidade a partir de conceitos e a partir da linguagem, que é um conjunto de abstrações semânticas e semióticas. Para arrefecer nossa condição originária de desamparo psíquico, manter em voga a noção de que verdades imutáveis existem é um alento que se desdobra na cultura humana a partir de postulados não apenas religiosos, mas também científicos e institucionais.
Nietzsche é um dos pensadores mais usados e abusados pelo universo acadêmico e não acadêmico. Talvez a forma mais honesta de ler esse autor é evitar conceitualizações globais, considerando o quão impreciso é afirmar em sua obra uma vontade linear de criar uma cosmovisão que o definisse como filósofo e escritor. Claro que isto não significa negar a sua enorme influência no pensamento moderno e pós-moderno.
Para Nietzsche, a realidade e a verdade são muito mais estéticas do que estáticas. Se isso foi capaz de problematizar e de criticar o pensamento essencialista da filosofia ocidental, também abriu caminho para o fenômeno da pós-verdade que hoje nos atravessa. Na pós-verdade o que importa é qual narrativa melhor se ajusta ao meu parecer prévio. A pós-verdade joga com a estratégia de oferecer um reconhecimento narcísico irrestrito.
Esse cenário pode ajudar a explicar o resultado eleições presidenciais de 2018 no Brasil. O tema das fake news, como desdobramento disso que chamamos de pós-verdade, teve papel fundamental no deslinde do pleito. O triunfo das fake news não teria sido possível se não existisse esse alvoroço afetivo que o Brasil experimentou a partir do show e da manipulação que a mídia tradicional fez dos acontecimentos políticos do país, sobretudo durante os governos do PT.
Não importa se a terra é plana ou se a ciência é feita de balbúrdia e maconha. O que importa é que o desejo, sustentado por narrativas falsas, seja satisfeito a partir de alguém que enuncia ódio como solução ao verossímil. Ódio, irracionalidade, autoritarismo e um certo espírito religioso que não contraria verdades ditas por um líder, sempre foram os ingredientes necessários para o triunfo do que conhecemos como fascismo, esse fantasma que paira no ar de nossos tempos.
Para entender um pouco mais sobre esse complexo cenário, ninguém melhor que Viviane Mosé: filósofa, psicóloga, poetiza, palestrante e uma das pensadoras mais importantes do Brasil contemporâneo.
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1. Nos últimos anos vem crescendo no Brasil os pedidos de censura a exposições artísticas e palestras com intelectuais, escritores e pensadores de diferentes áreas. Hoje essa censura tem caráter institucional, como o que aconteceu na Bienal do Livro do Rio de Janeiro em 2019, e com as atitudes e declarações de Bolsonaro a respeito, sobretudo, da curadoria que aprova filmes na Ancine. Como pode a psicologia e a filosofia analisar esse comportamento numa sociedade pós-moderna com uma grande abertura cultural e um grande fluxo de informação, como é o Brasil?
Vivemos tempos difíceis, marcados pela passagem de um mundo fundado na matéria e no poder repressivo, por uma sociedade virtualizada, fundamentada na linguagem e nos conceitos, marcada por um poder disciplinar. O poder repressivo é um poder visível, que te corta, te prende e te tortura. O poder disciplinar é um poder invisível, que nos torna cada vez mais fracos. Vivemos nesse tempo, em que nos tornamos cada vez mais fracos, e em que a vida perde absolutamente o valor. Pessoas sem vida e valor são facilmente manipuladas. A alegria é revolucionária, esse é o caminho que nós precisamos seguir no contemporâneo. Mas, ao contrário, estamos cada vez mais deprimidos e tristes, cada vez mais manipulados, cada vez mais dominados por fake news. Vivemos a guerra da informação. O que nos mata, o que nos tortura, o que faz com que seja cada vez mais altos os índices de suicídio, de depressão, de automutilação, de agressividade, de ódio virtual, de ódio presencial, de assassinatos, de homicídios, de feminicídios, de ataques a homossexuais, a transexuais e a transgêneros. Tudo isso é produto de uma guerra de informações contraditórias. Nossa terceira guerra mundial é uma guerra absolutamente visualizada. Isso é o que caracteriza nosso tempo.
A alegria é revolucionária, esse é o caminho que nós precisamos seguir no contemporâneo.
O Brasil, apesar de ser um país marcado pelo corpo e pela alegria, possui hoje altíssimos índices de depressão em crianças, adolescentes e jovens. O Brasil sempre teve uma ferida aberta, exposta, que é não ter assumido a sua história, e o poder público não ter tido uma relação com a gestão das cidades. De modo corajoso e direto, nós brasileiros sempre preferimos deixar isso para lá, sempre imaginando que um outro alguém cuidaria disso. Não temos uma atitude cidadã em relação ao Estado, nem em relação à gestão pública e ao cuidado com a coisa pública. Antes de zelar, depredamos nossas praças. O que é público sempre foi considerado por nós como de todos, e por ser de todos é de ninguém. Temos várias outras feridas, outros abismos que temos que enfrentar. Hoje que tudo cai no mundo contemporâneo, cada país lida com sua própria ferida. A ferida do Brasil está exposta, o poder público foi entregue a ninguém.
2. Em 2003 o Brasil abraçou massivamente um projeto de país inclusivo, laico e solidário. Mesmo entendendo o grau de inconsciência das massas na hora de eleger um líder, e fugindo da explicação cíclica da história dos povos nos estados modernos, que fatores você acha fizeram com que as classes populares contribuíssem na criação desse estado semievangélico que temos hoje com o Bolsonaro como líder?
Como eu disse, vivemos uma guerra, a guerra da informação. O Brasil é um país que tem um passivo muito grande com relação à educação. Foi apenas no final do governo Fernando Henrique, mas especialmente e massivamente no governo Lula e no governo Dilma, que a educação foi considerada como um valor no Brasil. A educação não era um valor para população, era um valor para a classe média que queria ascender para a classe alta. Era uma moeda de troca e de ascensão social. A educação passou a ser uma ferramenta de vida e de inclusão com o governo Lula. Isso foi marcante e, ao mesmo tempo, revolucionário. O governo Lula investiu no Brasil extremo, no espaço de abandono. Todos sabemos o abismo que existe no Brasil entre as classes. É vergonhosa a desigualdade social no Brasil. Mas ela nunca foi olhada.
O governo Lula investiu massivamente nas classes populares, em educação, em saúde, em saneamento. Essa atitude fez com que grande parte da classe alta e da classe média brasileira em busca de ascensão, perdessem os seus escravos, os seus serviçais, porque agora essas pessoas tinham emprego. Então você não tem mais alguém que cuide de um jardim, pra quem você dá um troco. Agora essas pessoas têm emprego. Isso provocou ódio nas classes de cima no Brasil. Não na maioria, mas em uma parte da população. Isso só aumentou o ódio entre as classes. Eles não podiam acreditar que o governo pudesse virar os olhos para as classes populares. Provocou uma reação que a gente vê hoje no Brasil. Essa reação não é das classes baixas.
As classes baixas são vítimas da manipulação da informação. Num país que tem um passivo tão grande com educação, nós ainda não conseguimos cobrir essa brecha, mesmo com o alto investimento financeiro e intelectual feito no governo Lula. O Brasil tem escolas inacreditáveis, corajosas, ousadas, mas que não atingem ainda todo o território. Especialmente porque esse trabalho foi cruelmente ceifado no governo Dilma, não por Dilma, mas por um Congresso Nacional disposto a derrubá-la. Agora nós vivemos literalmente imensos retrocessos nessa área.
Nesse cenário que eu acabo de descrever, as fake news têm um efeito devastador. Fake news com altíssima qualidade de imagem, com altíssimo investimento financeiro. E nossa população ficou refém disso nas últimas eleições. As bolhas que surgem da sociedade horizontalizada estão sendo utilizadas por quem de fato melhor usa a rede hoje. Isso é crime, um novo formato de crime político. Outro crime político é forçar o consumo, aumentar o consumo, isso também é um tipo de crime que se comete no mundo contemporâneo, na guerra que a gente vive.
O Brasil foi vítima disso tudo, elegendo, por exemplo, o Witzel no Rio de Janeiro. Com uma margem que a gente tem clareza que não é possível… Como pode um candidato crescer 30 pontos ou 20 pontos em 48 horas? Enfim, a gente sabe que tudo isso é produto da manipulação da informação. Como veja essa situação? Esse Brasil fragilizado por uma educação que ainda não conseguiu atingir a população, especialmente no sentido crítico, humano, de uma inteligência viva, capaz de se livrar desses abismos. É uma manipulação ordenada, infelizmente. Sei que isso deixará marcas eternas no Brasil. O que havia de pior no brasileiro foi altamente ressaltado. Não que não sejamos isso que estamos sendo hoje, não. Sempre fomos de algum modo preconceituosos, racistas, fascistas. Tudo isso esteve sempre presente, de algum modo. Mas nessa última eleição, esse cenário oculto associado a essa manipulação da informação colocou à mostra o que a gente tem de pior e o iluminou, fortaleceu, multiplicou, infelizmente.
3. Quais afetos são mobilizados quando se agigantam movimentos de autoritarismo religioso?
Eu não creio que nosso problema seja de autoritarismo religioso, mas de manipulação religiosa. A manipulação religiosa segue os mesmos princípios das fake news. Inclusive, a manipulação religiosa é muito próxima da manipulação política. E essa manipulação das fake news no Brasil, que tem uma grande base da população vítima de manipulação religiosa, determinou as nossas eleições. Isso é bombástico! Eu não creio que estejamos caminhando para o autoritarismo religioso, mas para uma manipulação cada vez mais virtual da informação, inclusive religiosa, que se utiliza dessa população conceitualmente frágil.
4. Como podemos explicar, a partir da psicologia, a necessidade de as pessoas abraçarem imaginários simbólicos para a explicação do seu mundo cotidiano?
As pessoas se apegam à ilusão, e chamam isso de verdade. Não é apenas a manipulação religiosa que nos manipula. A manipulação científica também nos manipula. A ciência está num grau elaboradíssimo, complexo, em relação às medicações psiquiátricas. Atingimos quase a perfeição da psicofarmacologia, temos medicação para tudo. Isso é uma conquista da ciência, mas esta é a maior manipulação pela qual passamos hoje. Uma população vítima de medicação psiquiátrica, passiva em relação aos conflitos políticos porque dopada, é incapaz de reagir à manipulação de um dos maiores mercados que é o da indústria farmacêutica. Nos vimos reféns de uma compra cotidiana de alegria. Compramos alegria, compramos ação. Diminuindo ansiedade estamos apartados de nós mesmos. Este é o ser manipulado hoje em todo o mundo, não necessariamente por conta da religião.
Não acho que a religião seja de fato nosso maior problema. Nosso maior problema é a nossa impotência diante da vida. A incapacidade de lidar com o sofrimento. Que há manipulação religiosa, eu não tenho a mínima dúvida disso, mas ela não é a única, e talvez não seja a maior, nem mesmo no Brasil. Vejo pessoas de todas as classes sociais acreditando que o Lula é líder de uma organização criminosa. Tanto quanto as classes mais baixas acreditam que a vacina mata e que a Terra é plana.
Vivemos manipulação de todos os tipos, e isso é numa sociedade que se desintegra e que perdeu o valor da verdade. A crise da verdade gera esse caos. Mas a verdade já devia ter caído há mais tempo. Porque a verdade é o modo como a ciência a manipula. Não esqueçamos que há hoje no Brasil uma luta para acabar com as universidades públicas. As universidades públicas são espaços de livre docência. De livre pesquisa, de livre produção de conhecimento. “Livre” não totalmente, né? Sempre tem algumas limitações. Mas as universidades cujas pesquisas são patrocinadas pelo mercado servem somente ao mercado. O interesse em acabar com as universidades públicas é o de ter o controle sobre o saber, e esse saber vai ser vendido para essas indústrias que finalmente nos manipulam. Então estaremos produzindo saber que nos manipula. Esse é um poder que ninguém tá prestando atenção e ele não é um poder religioso ou cristão.
5. Quais as relações entre o platonismo e a anti-democracia que está embutida nesse tipo de talibanismo neopentecostal que vivemos hoje no Brasil?
O cristianismo, diz Nietzsche, é um platonismo para o povo. Antes do cristianismo já existia a ideia de verdade. A verdade é aquilo que nos guia, porque ela é o princípio de tudo. Ela é o princípio de toda ação, única, indivisível. Sempre foi e sempre será idêntica a si mesma. Substância, base, substrato de todas as coisas e princípio de toda ação. Essa ideia de verdade que nasce com os gregos, que é o ser e que sustenta até agora toda a manipulação do discurso é o que está desabando.
A verdade sempre foi um modo de manipulação dos corpos. Quem detém as leis da cientificidade, ou seja, as leis que determinam o que a verdade é, é quem manipula, e por isso quem manipula o mundo e o conhecimento não é só a religião. A religião é apenas um modo de conhecimento que também manipula. Por isso o cristianismo é um platonismo para o povo. Mas nós estamos falando aqui sobre a mesma coisa. Mesmo porque a base da ideia de verdade grega é a que vai sustentar o cartesianismo e a ciência lá adiante, mas essa é a mesma ideia que sustentou o cristianismo. Deus também é o único, idêntico a si mesmo, princípio de todas as coisas. Sempre foi e sempre será. A ideia de verdade é idêntica à ideia de Deus.
6. De acordo com a história, tanto ocidental quanto oriental, quais foram as medidas eficazes para arrefecer os efeitos do autoritarismo religioso?
Hoje essa ideia caiu. De verdade. E com ela toda estrutura civilizatória. Nietzsche nos avisou sobre isso no final do século XIX. Por isso diziam que ele era pessimista. Ele propunha a transvaloração, a transvaloração de todos os valores. E hoje vivemos a transvaloração de todos os valores, só que ao invés de guiarmos essa transvaloração, é ela que nos guia em forma de violência, em forma de dor.
Isso necessariamente vai passar. Novos modos de ordenação já existem, que não são exatamente o da verdade. E essa nova razão, este novo pensamento, mais múltiplo, mais plural, em rede, é capaz de atender a maior reivindicação das pessoas no mundo hoje, que é o espaço para a diferença. Isso é o que o mundo quer.
A visão retrógrada já perdeu. O mundo nunca mais voltar ao que era. Nunca mais diremos “sim senhora”, “sim senhor” para nossos pais. Nunca mais seremos opostos entre masculino e feminino. Masculino e feminino se desgarraram dos corpos e hoje podem ser acessados por qualquer pessoa. Homens e mulheres usam masculino e feminino como lhes convém. Isso é o contemporâneo. Isso nunca mais vai voltar. E esse ódio de um grupo que está perdendo o poder, que era quem ocupava o topo de uma pirâmide que desabou em rede, essas pessoas, esses núcleos, esses centros de poder já perderam a guerra. Por isso voltaram de forma tão violenta.
O problema é a passagem desse modelo. O problema é passar por essa transição. É isso que é a maior angústia. Por isso minha dica é que, nesse momento de transição, precisamos favorecer os corpos, a alegria, a dança, a música, a sexualidade. Precisamos seguir, continuar rumo à liberdade dos corpos, à proliferação da vida, à intensificação e à alegria de viver. Temos que continuar nessa direção, porque um povo manipulado, é um povo triste, deprimido, doente, e potencialmente suicida.
JUAN MANUEL DOMÍNGUEZ é militante, professor, escritor, jornalista, roteirista, produtor e diretor de cinema. É também fotógrafo de documentários que fazem a defesa dos direitos humanos
PAULO FERRAREZE FILHO faz pesquisa de pós-doutorado em Psicologia Social (USP), é psicanalista em formação (CEAII/HSC-Unifebe) e professor de Psicologia do Direito (UNIAVAN)