Elaine Nassif
A Convenção 94, que dispõe sobre as “Cláusulas de Trabalho nos contratos públicos” é a Convenção, por excelência, que impede a precarização do trabalho nos contratos de terceirizados de serviços e obras pela administração pública.
Ela foi ratificada por 63 países, nos 5 continentes, dentre os quais pelo Brasil, o que ocorreu em 1965. De 5 em 5 anos o Brasil produz um relatório afirmando o cumprimento da Convenção, em razão da aplicação das Leis relativas às licitações e contratos administrativos. No último relatório, de 2019, foi invocada a Lei 8666/93. O próximo relatório será em 2024.
Nestes 5 últimos anos (2019-2023), que serão objeto do próximo relatório, vários acontecimentos tornaram mais importante dar atenção à Convenção 94 no Brasil: o STF aprovou a terceirização na área fim, os serviços públicos terceirizáveis passaram a ser licitados, após a edição do Decreto 9.507/2018, e houve o julgamento do Tema 383 da sistemática de repercussão geral do STF, quebrando o princípio constitucional da igualdade e com ele o valor e ideal jurídico axiológico do tratamento igual para situações iguais, um ideal que se confunde com o conceito de justiça e o sentimento de dignidade.
Diz a Convenção 94 da OIT[1], que os contratos administrativos conterão cláusulas garantindo aso trabalhadores interessados salários, abonos, horário de trabalho e outras condições que não sejam menos favoráveis do que as condições estabelecidas para um trabalho da mesma natureza, na profissão ou indústria interessada na mesma região.
A Recomendação 84 da OIT[2], por sua vez, dispõe que nos casos concessões, permissões ou autorizações para explorar um serviço de utilidade pública, aplicam-se disposições substancialmente análogas às que figuram nas cláusulas de trabalho dos contratos celebrados diretamente pelas autoridades públicas, ou seja, com seus próprios funcionários.
O Tema 383 da sistemática de repercussão geral do STF, originou-se de ação individual em que um terceirizado pedia equiparação salarial por exercício de trabalho igual com empregado da empresa pública Caixa Econômica Federal.
O sistema de precedentes importado para o Brasil padece dessa grande deficiência que é converter um caso individual e portanto, pouco elaborado, já que distante das instituições de garantia inseridas como legitimadas para a propositura da Ação Civil Pública, em tese paradigma para repercutir sobre direitos coletivos, difusos ou individuais homogêneos. Vejamos o tema e a tese:
Tema 383 – Equiparação de direitos trabalhistas entre terceirizados e empregados de empresa pública tomadora de serviços. Relator(a): MIN. MARCO AURÉLIO Leading Case: RE 635546 Descrição: Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, caput, incisos I, II, LIV e LV, e 37, caput, inc. II e § 2º, da Constituição Federal, a possibilidade, ou não, de equiparação de direitos trabalhistas entre empregados terceirizados e aqueles pertencentes ao quadro funcional da empresa pública tomadora de serviços.
Tese: A equiparação de remuneração entre empregados da empresa tomadora de serviços e empregados da empresa contratada (terceirizada) fere o princípio da livre iniciativa, por se tratar de agentes econômicos distintos, que não podem estar sujeitos a decisões empresariais que não são suas.[3]
É um verdadeiro desafio extrair a ratio decidendi deste precedente, quando ela submete o direito humano fundamental de cláusula constitucional pétrea, o de ser tratado com igualdade perante a lei, a um direito que além de não suportado pela mesma densidade, sequer autoaplicável, exigiu regulamentação infraconstitucional, dada pela lei da liberdade econômica.
A ratio atribui à liberdade econômica, tratar de forma diferente pessoas que trabalham lado a lado exercendo o mesmo trabalho e função. A dificuldade de sua sustentação é inevitável.
A situação agrava-se porque a contratação do terceirizado deu-se por meio de contrato administrativo decorrente de licitação regida pela Lei 8666/93, na qual as condições para a contratação, além de dadas pelas normas trabalhistas, como sua expressa determinação, não podendo ser inferior a elas, se submetem ao regime das empresas privadas no qual a equiparação salarial é um direito. A contratação que preveja salário inferior para atividades iguais às exercidas por pessoa contratada diretamente pela Caixa Econômica Federal viola este direito, respaldado não só em cláusula pétrea, mas na legislação trabalhista a que a Lei 8666/93 obriga a observar, que está por sua vez respaldada na Convenção 94 e Recomendação 84, ambas da OIT, da qual o Brasil é signatário.
Veja-se que há um sistema de normas, perfeitamente harmônico a sustentar a aversão estatal e internacional à precarização por meio da terceirização. A economia que o poder público busca com a terceirização não pode estar, por isso, calcada na redução ou discriminação salarial em razão do empregador. Aliás, aí a Tese oriunda do Tema 383 encontra outro importante empecilho: a proibição de discriminar[4].
Ademais o valor da identidade de situações merecer o mesmo tratamento por parte do Estado é uma ratio que se encontra dispersa por diversos julgamentos do mesmo tribunal. Na AD 9277, a comparação entre as relações foi identificar seus pontos comuns, suas semelhanças, buscando aplicação analógica, para produzir justiça no caso concreto. Todo sentimento de justiça advém do sentimento de não ser discriminado por ser tratado com igualdade. A discriminação pela forma da contratação é mesmo uma das tantas formas de discriminação repelidas constitucionalmente.
A tese prevalecente d.m.v., também destoa daquela que emergiu do julgamento da constitucionalidade da terceirização ilimitada, na área fim ou meio, quando todos os ministros confluíram no sentido de que não era a terceirização que gerava precarização, mas a má terceirização. E aí, quando o TEMA 383 traz, justamente, o exemplo da precarização contida numa má terceirização, o Supremo perde a chance de validar sua ratio anterior, seja a da igualdade, seja a da não precarização.
Com efeito, no embate do caso da terceirização, enquanto o Ministro Marco Aurélio defendia que “A terceirização coloca o trabalhador em uma constante redução de direitos por causa dos baixos salários, transitoriedade e falta de elementos que o integre como categoria”, o Ministro Barroso dizia que “A ocorrência de descumprimentos de direitos não decorre da natureza da subcontratação, mas sim devido a burla que a empresa terceirizada promove. Assim, não pode condenar a utilização desta forma de contratação devido a casos pontuais”.
Assim, seja do prisma do direito privado, em que o fim social do contrato deve ser observado, seja do ponto de vista constitucional do art. 5º direito da igualdade e da não discriminação de qualquer natureza, seja do ponto do art. 7º, onde os direitos ali descritos são dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, seja do ponto das condições da Lei 8666/93, seja ainda da Convenção 94 e da Recomendação 84 da OIT, uma ratio que supera a liberdade econômica, quando sequer a lei de regência da matéria atribui a tal liberdade, a redução do valor econômico do trabalho, determinando, ao contrário, a observância dos fins sociais dos contratos privados.
O Estado é uma entidade monopolista por definição. Não foi por outra razão que Weber o definiu como a organização que detém o monopólio legítimo da violência. Como bem ensina Bresser Pereira, o Brasil teve duas reformas administrativas, uma na década de 30 como resultado de uma crise de mercado, e outra na década de 90, impulsionada por uma crise fiscal do Estado.
As organizações privadas e as públicas não-estatais têm poder apenas sobre os seus funcionários, enquanto que o Estado tem poder para fora dele, detém o “poder de Estado”: o poder de legislar e punir, de tributar e realizar transferências a fundo perdido de recursos. O Estado detém esse poder para assegurar a ordem interna — ou seja, garantir a propriedade e os contratos —defender o país contra o inimigo externo, e promover o desenvolvimento econômico e social.[…] As atividades principais são as atividades propriamente de governo, são as atividades em que o poder de Estado é exercido. São as ações de legislar, regular, julgar, policiar, fiscalizar, definir políticas, fomentar. Mas para que estas funções do Estado possam ser realizadas é necessário que os políticos e a alta burocracia estatal, no núcleo estratégico, e também a média administração pública do Estado,22 conte com o apoio de uma série de atividades ou serviços auxiliares: limpeza, vigilância, transporte, coperagem, serviços técnicos de informática e processamento de dados, etc. Segundo a lógica da reforma do Estado dos anos 90, estes serviços devem em princípio ser terceirizados, ou seja, devem ser submetidos a licitação pública e contratados com terceiros. Dessa forma, esses serviços, que são serviços de mercado, passam a ser realizados competitivamente, com substancial economia para o Tesouro.
A economia para a administração pública adviria, segundo as expectativas da reforma, da redução dos custos com a administração desses próprios empregados, de seus substitutos em caso de afastamentos, bem como das despesas com a realização de concursos para tais funções.
Importante também relacionar que o tema 383 foi adstrito a “agentes econômicos”, o que exclui, literalmente, os órgãos e entidades da administração pública sem atuação econômica, restando aplicável somente ao BB e CEF, por serem as únicas estatais com esta finalidade no âmbito federal, seguidas eventualmente, quando existam, de suas correlatas nas outras esferas de governo.
Questiona-se, ademais, a possibilidade de nas idênticas ações seguintes ao tema 383, invocar-se o distinguishing ou o overruling, instrumentos próprios do sistema de precedentes, ante a inexistente apreciação da Convenção 94 e Recomendação 84 no controle de convencionalidade, haja vista que o STF está ele também adstrito à observância de tais normas internacionais, seja internamente, nas suas próprias licitações e contratos, seja nos julgamentos que profere.
O exercício da distinção é atômico e depende da demonstração sofisticada da diferença entre o caso concreto em processamento e o que lhe é precedente. Já o overruling tem amplo espectro exploratório no caso em exame, seja pelas razões já expendidas quanto aos legítimos interesses da sociedade jurisdicionada em privilegiar o princípio do tratamento igual a situações iguais, um princípio que acompanha a ideia de justiça, quanto da inadequação do tema às convenções internacionais amplamente aceitas e ratificadas pelo Brasil, podendo-se acrescentar o trabalho de igual valor que perpassa também as convenções 90, 100, 156, 190, para citar algumas da OIT.
Na expectativa de contribuir para o aprimoramento das instituições jurídicas, seguimos na convicção de ser muito salutar o exercício da crítica, não de pessoas, mas de obras, julgamentos e pensamentos ou ideias que os embasam, estimulando o debate construtivo entre os integrantes do campo jurídico-laboral.
[1] Disponível em: < https://www.ilo.org/brasilia/convencoes/WCMS_235183/lang–pt/index.htm> Acesso em 26. Abr. 2023.
[2] Disponível em: https://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:12100:0::NO:12100:P12100_INSTRUMENT_ID:312422:NO Acesso em 26. Abr. 2023.
[3] Disponível em https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=4032750&numeroProcesso=635546&classeProcesso=RE&numeroTema=383 Acesso em 9.Abr.2023. cf. INTEIRO TEOR DO ACÓRDÃO
[4] Art. 7º CR/88: XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil; XXXI – proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de deficiência; XXXII – proibição de distinção entre trabalho manual, técnico e intelectual ou entre os profissionais respectivos;