1 de setembro de 2023

A CLT JÁ PROTEGE ENTREGADORES E MOTORISTAS DE PLATAFORMAS DIGITAIS!

Murilo C. S. Oliveira[1]

 

Em dissenso com a argumentação acadêmica[2] ou jurisprudencial[3] que sustentam que não há regulação na ordem jurídica brasileira para estes trabalhadores em plataformas que não estariam enquadrados como empregados por falta da subordinação jurídica clássica, sustenta-se neste texto que há incidência da regulação da CLT para estes trabalhadores. Trata-se de rememorar que são empregados todos aqueles trabalhadores que, na forma do art. 3º da CLT, que estejam “sob dependência”, em dissenso com as reduções doutrinárias e jurisprudenciais que não consideram a literalidade do amplo conceito legal e se apegam uma versão reduzida de “dependência” como apenas subordinação clássica.

Não há muita dúvida de que as plataformas digitais classificadas como dirigentes impõe aos seus trabalhadores a condição de “dependentes”. A dependência tecnológica do acesso à plataforma digital como condição de trabalhar neste sistema é inclusive qualificado academicamente como “subordinação disruptiva” para Gaia[4] e como subordinação algorítmica para Pires[5]. Ramalho[6] (2022, p. 315) caracteriza que o labor em plataformas digitais é demarcado pela dependência. Rocha e Meireles[7] também verificam uma ampla concepção de dependência no modelo de trabalho na precursora decisão espanhola que reconheceu o vínculo de emprego, adotando o conceito de ajenidad.

O argumento central aqui é que a precificação por “tarefa” – no sentido de salário dependente de uma ação (viagem ou entrega) em um certo tempo – implica dependência do trabalhador nessas plataformas digitais. A precificação das plataformas é, então, o método de gestão do trabalho que causa a dependência econômica, haja vista que impõe, de modo unilateral, quanto o trabalhador irá auferir pelo trabalho prestado, em típica situação de “assalariar”. Se o modelo da plataforma digital fosse baseado no real trabalho autônomo, caberia ao trabalhador empreendedor fixar qual o valor do seu labor.

No entanto, a imposição do preço pelas empresas-plataformas revela-se como forte evidência de que estas não são apenas intermediadoras entre trabalhadores e clientes solicitantes de serviço. Decerto que se a plataforma é apenas uma intermediadora que não governa (ou controla) os trabalhadores, o pagamento por esta intermediação deveria ser quantificado por essa aproximação via serviço tecnológico e não baseado no valor final do trabalho prestado. Se fossem meramente intermediadoras, tal como agem empresas de corretagem e agência, não poderiam impor preços pelos serviços feitos pelos intermediados, pois quem media não estabelece o valor do trabalho alheio. Como as plataformas de trabalho estabelecem os padrões remuneratórios, elas exercem direção econômica da atividade sob o trabalhador, sujeitando-lhe a uma dependência igualmente econômica[8].

Com isso, quando a plataforma digital de trabalho precifica o labor do trabalhador, configura-se a característica típica e exclusiva do empregador que “assalaria” (art. 2º da CLT) e, por consequência, impõe a situação fática de prestação de serviços “sob dependência” (art. 3º da CLT). A literalidade destes artigos da CLT permite a qualificação jurídica desses trabalhadores como empregados, naturalmente desde que afastada a visão doutrinária e jurisprudencial que, desconsiderando a literalidade da legislação, somente concebe a ideia de subordinação jurídica como a dimensão “clássica” e subjetiva com fiscalização de jornada e controle presencial por um superior (hierarquia). A verificação do labor dependente, no plano fático, enseja, por coerência e integridade da ordem jurídica, o afastamento a presunção de labor por conta própria para fins previdenciário advinda da previsão do Art. 11-A da Lei nº 12.587/2012, redação dada pela Lei nº 13.640/2018.

Ressalta-se que, como consta na legislação brasileira que define empregador e empregado, não se exige que haja exclusividade. Isto torna juridicamente inócua e irrelevante a alegação de que os trabalhadores que laboram em plataformas digitais podem prestar serviços para diversas empresas, o que impediria a caracterização do vínculo empregatício. Tanto empregados como autônomos podem ter multiplicidade de empregadores e tomadores dos serviços.

Por força da mudança advinda da Lei nº 12.551/2011 que incluiu o parágrafo único no art. 6º, a CLT foi ajustada para explicitar que os meios informatizados – incluídos logicamente os meios digitais baseados em conexão com a internet – também se inserem como expedientes de manifestação da subordinação jurídica. Isto é, a CLT encontra-se atualizada para permitir que o poder diretivo do empregador se manifeste por “meios telemáticos e informatizados”, exatamente como ocorre na organização via algoritmos das plataformas digitais de trabalho.

Em que pese a configuração do vínculo empregatício decorrer da simples aplicação dos artigos 2º, 3º e do parágrafo único do 6º da CLT, o mais forte argumento contrário centra-se na ideia de que o trabalhador nas plataformas digitais tem liberdade de horários e possibilidade de recusar o labor. Cabe, então, recorrer à própria CLT para mostrar que estas duas circunstâncias já estão previstas e permitidas na legislação.

Desde 1943 com a vigência da CLT, sabe-se que o horário fixo e fiscalizado não é uma característica constitutiva da relação de emprego, pois há diversos empregados que, na forma do art. 62, não se sujeitam à fiscalização do trabalho. Ter flexibilidade de horários, definir os dias que vai laborar, escolher quando repousar ou definir o horário de término da jornada é, então, faculdade que não é impeditiva da condição de empregado, pois é a própria legislação reconhecem empregados que têm essa liberdade de jornada.

Por outro lado, a recusa à “chamada” para uma viagem ou uma entrega também não é, sozinha, elemento cabal da caracterização do trabalho autônomo. A Lei nº 13.467/2017, ao alterar a CLT, estabeleceu que “A recusa da oferta não descaracteriza a subordinação para fins do contrato de trabalho intermitente” (art. 452-A, §3º). Esta regra, por simples analogia, justifique que, no modelo de muitas plataformas digitais que decidem não exigir jornada fixa (permanente) que o trabalhador tenha o direito de recusar a tarefa solicitada via aplicativo.

Assim, a flexibilidade e liberdade atribuída aos trabalhadores das plataformas digitais já se encontram permitida pelas regras da CLT dos seus artigos 62 e 452-A, §3º. Ressalve-se que há controvérsia se essas liberdades podem, concretamente ser manejas sem efetiva punição ou discriminação, porque a recusa de viagens ou a falta de login implicam em redução de notas com a consectária diminuição de novas demandas e até exclusão do ecossistema.

Independente deste debate sobre a efetiva liberdade dos trabalhadores plataformizados, o modelo de assalariamento por peça e por tarefa já explica que pode o empregado dispor de relativa autonomia sobre o tempo de trabalho e a quantidade de produção a ser alcançada. Também desde 1943, consta na CLT que os empregados podem ser remunerados por outros critérios diversos da jornada. A redação do art. 78 da CLT estabelece “Quando o salário for ajustado por empreitada, ou convencionado por tarefa ou peça, será garantida ao trabalhador uma remuneração diária nunca inferior à do salário mínimo…”. Em complemento, o art.83 da CLT valida o trabalho feito pelo empregado em seu domicílio, assegurando-lhe o salário mínimo mesmo que esta remuneração variável seja por peça ou tarefa. Destarte, na remuneração por peça ou tarefa, o empregado que labora externamente já poderia definir os horários de trabalho, aceitando ou não novas demandas, tal como os trabalhadores das empresas plataformas, aliás já foi reconhecido em algumas decisões brasileiras[9].

No caso das plataformas digitais que fazem serviços de transporte individual ou entregas, a leitura atenta da CLT propicia ainda que se encontre uma regulação especial para a atividade desses trabalhadores “motoristas”. Ou seja, as singularidades do trabalho de motoristas em veículos ou em motocicletas já se encontra inscrita na CLT, inicialmente pela Lei nº 12.619 de 2012, com redação alterada Lei nº 13.103/2015, conforme seção IV-A que cuida exclusivamente do “Serviço do Motorista Profissional Empregado” e abrange os artigos 235-A até 235-H.

É importante ressaltar que esta regulação especial do trabalhador motorista comporta a atual fórmula de trabalho do salário por “tarefa” praticado pelas plataformas digitais. A precificação da “tarefa” de fazer uma viagem ou entrega está devidamente autorizada pelo art. 235-G, o qual estabelece: “É permitida a remuneração do motorista em função da distância percorrida, do tempo de viagem ou da natureza e quantidade de produtos transportados, inclusive mediante oferta de comissão ou qualquer outro tipo de vantagem…”.

A liberdade de definir o início, o intervalo ou final da jornada – razão alegada por muitos trabalhadores plataformizados como justificativa para recusa do vínculo empregatício – é igualmente situação prevista na CLT para os motoristas empregados. Estes são alcançados pela proteção trabalhista da CLT e tem horários livres, como estabelece o art. 235-G, § 13: “Salvo previsão contratual, a jornada de trabalho do motorista empregado não tem horário fixo de início, de final ou de intervalos”.

Convém então fugir das reduções conceituais que operam na dogmática trabalhista e nas posições jurisprudenciais. O conceito literal de empregado na CLT não está adstrito à subordinação jurídica, porquanto, repita-se, o legislador elegeu um critério amplo e indeterminado de trabalho “sob dependência”. Da mesma forma, a subordinação jurídica não se restringe à condição de trabalhar com jornada fiscalizada e sujeita à gerência presencial por um encarregado, haja vista a existência de outras dimensões de subordinação jurídica como a objetiva ou estrutural. Visualizar o empregado apenas como aquele que se insere na subordinação clássica é uma redução conceitual injustificável, cujo propósito hermenêutico (e ideológico) é reduzir a aplicação da lei que sempre foi ampla.

Justamente pela recuperação da ampla e literal concepção consagrada na legislação trabalhista nacional, é factível reconhecer que o trabalhador cujo preço do trabalho é fixado unilateralmente pela plataforma digital é um típico empregado, todavia com salário não fixado por tempo. Realizar uma viagem ou uma entrega, a partir de uma tarifa variável e quantificável pela distância percorrida e ponderada em um certo tempo, é receber salário por “tarefa”, como fórmula de aferição da retribuição ao trabalho baseada primordialmente no resultado e secundariamente no tempo.

O assalariamento por “tarefa” – concepção dogmática mais precisa do que o salário por “peça” – é previsto na CLT desde sua origem, conforme dicção dos seus arts. 78 e 83. Do mesmo modo, o empregado é aquele labora sob dependência (art. 3º), inclusive por meios informatizados (art. 6º, parágrafo único) e mediante assalariamento (art. 2º). Este mesmo empregado pode estar sujeito à jornada livre (art. 62) e recusar a chamada do empregado para o labor (art. 452-A, §2º). No caso de motoristas de veículos ou motocicletas, a CLT viabiliza que o horário de trabalho não seja fixo (art. 235-G, §13), que o salário seja por esta tarefa de transportar pessoa ou coisa (art. 235-G). Ainda, é direito destes trabalhadores plataformizados com salário por “tarefa” o direito ao salário mínimo, conforme art. 83 da CLT.

No entanto, uma advertência conceitual se impõe. A argumentação deste texto indica que a precificação unilateral das plataformas caracteriza, por si, a situação de dependência (econômica) e subordinação do trabalhador, ensejando a caracterização do vínculo empregatício como regra. Todavia, se no caso concreto, ocorrer trabalho eventual ou esporádico, não haverá a qualificação da relação como empregatícia, por força do requisito da “não-eventualidade” do art. 3º da CLT.

Este esforço em fazer remissão a um conjunto de dispositivos que estão na CLT demonstra que, superadas reduções conceituais doutrinárias e axiologia liberal que vem reverberando na política trabalhista, indica que a regulamentação para as mais conhecidas plataformas digitais de trabalho já existe. Não falta, portanto, legislação para os principais aspectos protecionistas diante da assimetria daquela relação de trabalho, sem prejuízo da vindoura criação de nova legislação mais específica outras questões, a exemplo dos bloqueios e exclusões. Falta, decerto, a vontade e a concretização do compromisso constitucional de proteger os trabalhadores dependentes.

 

[1] Juiz do Trabalho na Bahia. Professor Associado da Faculdade de Direito e do PPGD- UFBA. Doutor pela UFPR e estágio pós-doutoral pela UFRJ. Pesquisador do Grupo Transformações do Trabalho, Democracia e Proteção Social (TTDPS/UFBA). E-mail: murilosampaio@yahoo.com.br.

[2] ZIPPERER, André Gonçalves. A intermediação de trabalho via plataformas digitais: repensando o direito do trabalho a partir das novas realidades do século XXI. LTr Editora, 2019.

[3] BRASIL. Tribunal Superior do Trabalho. Processo nº TST-AIRR-10575-88.2019.5.03.0003. Relator: Ministro Alexandre Ramos.  Brasília: DEJT, 09 set. 2020. p. 1-14.

[4] GAIA, Fausto Siqueira. Uberização do trabalho: aspectos da subordinação jurídica disruptiva. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019.

[5] PIRES, Victória Régia Batista. Subordinação por padronização na empresa Uber: um novo olhar sobre a subordinação jurídica. In: ROCHA, Andréa Presas; LEAL, Érica Ribeiro Sakaki; OLIVEIRA, Murilo Carvalho Sampaio (org.). Direito do trabalho e tecnologia: aspectos materiais e processuais. Salvador: Escola Judicial TRT-5, 2022. p. 299-322. ISBN 978-65-88862-18-6. Disponível em: https://portalpje.trt5.jus.br/node/60553. Acesso em: 11 jan. 2023

[6] RAMALHO, Maria do Rosário Palma (org.). Autonomia, subordinação jurídica e dependência económica no trabalho em plataformas digitais (breves reflexões). In: RAMALHO, Maria do Rosário Palma (org.). Trabalho na Era Digital: que Direito?. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2022. p. 307-324.

[7] DA ROCHA, Cláudio Jannotti; MEIRELES, Edilton. A uberização e a jurisprudência trabalhista estrangeira. Conhecimento Livraria e Distribuidora, 2021.

[8] OLIVEIRA, Murilo. O Trabalho Uberizado: dilemas da subordinação jurídica e a retomada da dependência econômica In: direito do trabalho no século XXI.1 ed. Belo Horizonte: UFMG, 2020, v.1, p. 46-53. Disponível em https://www.conpedi.org.br/wp-content/uploads/2020/12/Livro-2-Direito-do-Trabalho.pdf

[9]  São exemplos o Acórdão do no processo 0000699-64.2019.5.13.0025 e a sentença prolatada nos autos do processo n. 1000907-63.2022.5.02.0047. Ademais, o recente Acórdão do TST adotou a seguinte razão “… estamos diante da subordinação clássica ou subjetiva, também chamada de dependência.

 

O trabalhador é empregado porque não tem nenhum controle sobre o preço da corrida, o percentual do repasse, a apresentação e a forma da prestação do trabalho. Até a classificação do veículo utilizado é definida pela empresa, que pode, a seu exclusivo talante, baixar, remunerar, aumentar, parcelar ou não repassar o valor destinado ao motorista pela corrida. …” (RRAg-100853-94.2019.5.01.0067, 8ª Turma, Relator Ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, DEJT 03/02/2023).

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