Bruno Alves Rodrigues*
Introdução – Democracia e efetividade do judiciário.
O processo político, numa sociedade de tradição democrática, garante a legitimidade da realização do direito, na iteratividade entre norma e fato. A política parte da experiência coletiva (fato) para objetivação de seu regramento, segundo vontade coletiva (norma), de forma a prevalecer padrão de conduta representativa do bem (que agora, positivado, deixa de ser só moral, para também ser jurídico). O que o direito faz é garantir a efetividade deste bem. Daí, a interatividade sistêmica entre a autodeterminação normativa dos povos (política) e a efetividade das instituições (direito).
A democracia está na autodeterminação da vontade pela sociedade civil organizada, segundo valores de liberdade e igualdade. A maturidade de uma sociedade estará, primeiramente, em sua efetiva condição de auto-determinação política. Só assim, a norma objetivada pelo processo político não se distanciará da tradição cultural do povo. E, neste mesmo sentido, a sua observância pela própria sociedade representará uma constante natural, cujos desvios esparsos merecerão ser corrigidos através dos instrumentos que também a própria sociedade instituiu. Neste ponto, constatamos o segundo termômetro de maturidade social – a eficácia das instituições constituídas pelo próprio povo, para garantia de efetividade do bem.
A auto-determinação política expressa-se em representações simbólicas. O texto da lei é um símbolo que objetiva a moral coletiva em determinado contexto cultural. Lex vem de legere, que significa reunir, e indica o caráter abrangente da lei, a compreender todos os fatos da vida social. O fato só se mostra relevante frente à norma e a norma inexiste em sentido se se desprender de sua vocação regente do universal concreto.
O símbolo (texto legal) exerce um papel de comunicação entre os produtores e os destinatários das normas (que, num regime democrático, se confundem). São duas tarefas dos mesmos sujeitos, e o dado ético de uma comunidade é que as aproxima, despertando, na eficácia reflexiva da norma, o reconhecimento entre o produtor (ocupado com o significante) e destinatário (ocupado com o significado).
É o reconhecimento, por parte do sujeito de direito, de sua condição de responsável pela construção da norma em abstrato, que legitima o processo de aplicação das leis (normas) aos casos concretos (fatos).
Assim garante-se contínua e propositiva construção cultural, capaz de sedimentar tradição pautada nos valores de igualdade e liberdade, e não sob aquilo que lhe deve sempre ser conferido, apenas, como instrumento de técnica, a força (coerção). Exemplos não faltam, no curso da história, bastando observar o fim levado pelos governos despóticos e pelos regimes ditatoriais, modelos de distanciamento entre poder e povo, retirando-se a legitimidade daquele – o que leva, por conseguinte, ao enfraquecimento das instituições, que não conseguem garantir, por muito tempo, regras que se distanciam da cultura popular.
Sob esta ótica, podemos dizer que, contraditoriamente, quanto mais as instituições precisam do instrumento força, para afirmação no seio social, mais fracas, portanto, as mesmas se apresentam para a mesma comunidade. Ou seja, as instituições tanto mais precisarão do instrumento coerção (força), quanto mais houver um distanciamento entre aquilo que as mesmas garantem e aquilo que efetivamente representa a auto-determinação (liberdade) desta mesma sociedade. Por isso, mostra-se impossível a coexistência de instituições (aqui, compreendida a norma e os instrumentos de sua garantia – Judiciário, Ministério Público, Advocacia, etc.) eficazes, com um processo político frágil.
Apresenta-se, como conseqüência natural da conjuntura política fraca de um país, a tentativa de reforço das instituições, no que tange à estruturação e instrumentalização do potencial coercitivo. Qunto mais se tenta reforçar as instituições apenas pela força, e não pela aproximação das mesmas, em relação à sociedade, maior afinamento haverá com uma concepção puramente autoritária – e, por conseguinte, segundo exemplos do curso do processo histórico, do colapso do próprio sistema.
Vivencia-se, no Brasil, ambiente de descrença com o dado político. Pesquisa recente do Datafolha dá conta de que a taxa de reprovação do Congresso é de 40% do eleitorado.[1] Neste contexto, fica fácil a ocupação interinstitucional do vácuo deixado pelo Congresso Nacional, papel inicialmente assumido pelo Executivo, com a edição abusiva de Medidas Provisórias, e que agora passa a ser absorvida pelo Judiciário.
A República Nova completa um quarto de século, com toda uma geração formada em ambiente redemocratizado. E o que se constata é que paga-se, na urna, o preço do reflexo da atuação alienada de uma massa com sério problema de déficit educacional.
Assim é que a materialização do ideal republicano foi marcada, já de início, pela renúncia do primeiro presidente eleito através do voto direto, no curso de um processo de Impeachment que resultou na cassação dos direitos políticos, por oito anos, do então presidente Fernando Collor de Mello, que hoje integra a mesma casa que o condenou, no exercício do cargo de Senador da República, desde 2007[2]. O seu processo de Impeachment foi conduzido pelo então Presidente da Câmera dos Deputados e hoje Deputado Federal Ibsen Pinheiro que, em 1994, teve seu mandato e direitos políticos cassados, acusado de participar do escândalo dos anões do orçamento[3]. O mesmo evento político culminou na cassação de mandato de outros seis deputados, bem como na renúncia de quatro parlamentares.
A Câmara Alta do Congresso Nacional também experimentou sucessivos escândalos. Destaca-se, inicialmente, a renúncia dos Senadores Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda, em 2001, para evitar-se cassação e inelegibilidade decorrente de investigação por quebra de decoro parlamentar, referente à fraude em painel eletrônico e acesso à lista de votação no processo que implicou na cassação de mandato do Senador Luiz Estevão, também, por quebra de decoro parlamentar, em investigação de denúncia de corrupção[4]. Antônio Carlos Magalhães foi reeleito Senador e empossado no cargo já em 2003, enquanto que Arruda foi eleito o Deputado Federal mais votado do Distrito Federal, em 2002[5], passando a Governador do Distrito Federal sufragado, em primeiro turno, no ano de 2006, cargo exercido até 2010, quando teve sua prisão preventiva decretada pelo STJ (Inquérito n. 650) e mantida pelo STF (HC 102.732), na sucessão de ocorrências decorrente de relação espúria, entre o executivo e a câmera dos deputados, arquitetada em esquema de compra de votos já conhecido no Brasil, desde 2005, através do neologismo “mensalão”.
A recente história legislativa do Brasil foi marcada por outros episódios graves. A já desgastada representação do Distrito Federal no Senado foi marcada pela renúncia de Joaquim Roriz em 2007, ex-governador distrital envolvido em escândalo de corrupção[6]. Verificou-se, ainda, a renúncia aos cargos de presidente do Senado e de Senador, por Jader Barbalho, em 2001, no intuito de se impedir que o processo de quebra de decoro parlamentar, no bojo de denúncias de corrupção, pudesse inabilitá-lo para o exercício das funções públicas, em caso de cassação. Em 2002, foi eleito Deputado Federal mais votado pelo Pará, cargo para o qual foi reeleito, em 2006.[7] O cargo de Presidente do Senado também foi objeto de renúncia por Renan Calheiros, em 2007, após várias denúncias de corrupção[8]. A instabilidade do mesmo cargo perpetuou-se na gestão do ex-presidente José Sarney, marcado pelo escândalo dos atos secretos, em 2009[9].
Os episódios narrados destacam-se dentre outras dezenas de escândalos[10] que descredenciam a vida política, no Brasil, e evidenciam os “valores” de representativa parte dos pares que elegeram e continuam a eleger os mesmos mandatários, ignorando o fato de cerca de 40% (quarenta por cento) destes contarem com registro de ocorrências perante o Poder Judiciário e o Tribunal de Contas[11].
As fragilidades do nosso sistema político, assim, nunca ficaram tão evidentes, e a corrupção legislativa tem um efeito pernicioso muito maior do que aquele hodiernamente focado (desvio de verbas públicas). A corrupção bloqueia o processo político, em seu sentido ético, ou seja, o de viabilizar a auto-determinação da sociedade. Se o político se distancia da busca da tradição cultural da sociedade, segundo princípios programáticos em razão dos quais foi (ou deveria ser) eleito, para buscar objetivar em lei aquilo para o que foi comprado, o resultado da atividade legislativa aproximar-se-á de interesses (poiéticos) de grupo, e se distanciará da vontade social livremente determinada (ético).
Indivíduos conscientes, dotados de uma educação reflexiva, conseguem distinguir valores regentes de uma vida virtuosa, e que não se distanciam, em última instância, da moral, na acepção coletiva. Enxergam, assim, a importância de legitimar a sua representatividade, pelo exercício do voto, na busca de partidários de sua crença política, e não na busca de interesses pessoais. Em civilizações desenvolvidas, de exercício consciente da democracia, valoriza-se o voto por afinidade principiológica. Nas outras, se o voto não é consciente, mas sim alienado (no sentido econômico e da consciência), efetiva-se o fisiologismo na busca de interesses utilitaristas, numa visão clientelista de Estado – ou seja, numa visão em que o sujeito não integra o Estado, compartilhando direitos e obrigações, na voz de representante sufragado, mas sim enxerga-se o Estado como ente autônomo, integrado por pessoas para as quais se transfere o poder, através do voto, em contra-partida a interesses pessoais.
Se a quem se outorgou o poder de objetivar em lei o que, a um só tempo, derivaria da tradição cultural, e facilitaria norteamento de padrão de conduta dos indivíduos, não representa, efetivamente, a sociedade – mas sim conseguiu alcançar tal poder, a partir da alienação desta –, temos afetada a legitimidade das instituições produzidas por tal poder, que não são enxergadas pelo povo como algo dele derivadas, dificultando o respeito espontâneo às mesmas e estimulando a tentativa de imposição coercitiva, por parte de tais instituições.
Não por outro motivo, quase todas as recentes reformas legislativas do judiciário verteram-se no sentido de estruturá-lo como instrumento de força, e não de aproximação da sociedade.
O processo judicial será tanto mais próximo da sociedade, quanto mais o mesmo conseguir obter a pacificação social pelo seu potencial cognitivo; e torna-se cada vez mais distante, na medida em que se impõe pelo seu potencial executivo.
Em uma comunidade ética, a partir da condução imparcial do processo, por parte do Estado-juiz, conhecedor da lei objetivada pela sociedade, oportuniza-se o encontro de dois sujeitos litigantes, integrantes desta mesma sociedade, viabilizando-se o diálogo (dia-logos – encontro de duas razões) em igualdade de condições (contraditório), de forma a ensejar reflexão acerca das condutas vertidas como anti-jurídicas (fato), frente àquilo que os próprios litigantes definiram como certo por meio do processo político (norma). Tal fase, denominada cognitiva, seria suficiente para se alcançar aquilo que se denomina educação ética, pela reflexão, tornando-se, per se, eficaz na pacificação do conflito, seja pelo consenso alcançado neste diálogo processual, seja na aceitação do provimento judicial, como correto. Daí, o jargão em civilizações mais desenvolvidas no sentido de que decisão judicial não se discute; cumpre-se.
Por outro lado, contudo, se o judiciário promove imposição de lei alheia aos litigantes, que não reconhecem a mesma pela alienação política, dificultada está a instigação do processo reflexivo dos litigantes, que, ao não reconhecerem a lei como termo simbólico em que figuram não apenas como destinatários, mas também como produtores, deixam de admitir a base de legitimidade do provimento judicial fundado em tal lei, perdendo eficácia a fase cognitiva e fazendo-se necessária a fase executória.
Tal conclusão torna-se mais evidente a partir da exposição do mecanismo de funcionamento de um processo ético.
A atuação jurisdicional tem como resultado a educação para a defesa de direitos próprios e respeito aos alheios[12], e como decorrência deste norte (e não paralelamente ao mesmo) encontra-se a pacificação das relações sociais, a estabilidade das instituições políticas, o exercício da cidadania e a preservação do valor liberdade. Uma reflexão acerca da natureza jurídica do processo, bem como da sua essência, revelam a primariedade deste escopo educacional-reflexivo.
II – O processo judicial ético. A essência do contraditório.
A sociedade política busca consenso, fundado numa razão universal, que convirja de postura democrática, pois só assim se poderá imaginar uma supressão efetiva das relações de dominação e a instauração da sociedade política na sua essência consensual como reino da liberdade realizada[13]. A Justiça apresenta-se nesta instância harmônica de convívio social, com a concreção dos valores igualdade e liberdade. Não é com a atuação do Estado-juiz, portanto, que se concebe a justiça. Esta já existe e vigora, como regra, numa comunidade ética, atuando o judiciário, apenas, quando provocado, para corrigir distorções – não competindo ao mesmo passar à condição de preceptor do conceito de justiça.
O excesso de conflituosidade em determinada comunidade resolve-se, em primeiro lugar, com a educação moral de seus integrantes, enfrentando-se o problema, primariamente, enquanto questão social, e não institucional. A morosidade do judiciário somente será superada, de forma efetiva, quando as pessoas tornarem-se mais virtuosas, irredutíveis ao precário e contingente arranjo dos objetos do sentido e ao “mau infinito” do desejo[14], pois agindo segundo a reta razão, conforme a ordem paradigmática ou nomotética, atuarão como verdadeiros indivíduos universais, não havendo necessidade de se recorrer à instância jurisdicional para correção de distorções de conduta.
O Estado deve sempre procurar investir na educação do povo, viabilizando a reflexão dos indivíduos para a busca da consciência-de-si, medida que não representaria mero paliativo, como as apresentadas nas simples reformas da técnica (como as reformas procedimentais).
A efetiva atuação do direito deve ser incentivada para ocorrer, de forma espontânea, na sociedade, e não de forma remediada, no judiciário, na medida em que, como afirma SALGADO as mudanças políticas e sociais têm de vir em primeiro lugar, enquanto movimento imanente da liberdade ou do Espírito, em que se insere a ordem jurídica[15].
A atuação do judiciário deve ser tendente à elevação ética da consciência-de-si dos jurisdicionados, viabilizando uma reconciliação do indivíduo com a lei e a restauração do direito objetivo[16]. Como adverte LIMA VAZ,
a consciência primeiro emerge e se forma na relação não-recíproca com o mundo. Ela avança, em seguida, para a relação recíproca com outra consciência pelo reconhecimento. É então que se constitui como consciência-de-si (Eu) que, como consciência propriamente histórica, é igualmente consciência de um Nós[17].
A atuação jurisdicional busca, exatamente, corrigir distorções do indivíduo que não agiu espontaneamente de forma virtuosa, ou seja, não expressou a consciência-de-si, no reconhecimento do outro. As distorções existentes, nas relações sociais, ocorrem na medida em que, não obstante as comunidades humanas sejam, por natureza, comunidades éticas – tendo no ethos uma dimensão constitutiva de sua estrutura –
nas condições variáveis e extremamente complexas em que essas comunidades se realizam penosamente na história, sua face ética aparece quase sempre deformada ou velada pelos fatores poderosos que impelem os indivíduos e os grupos na direção das necessidades e dos interesses, em que o encontro com o outro é medido pelas categorias da utilidade, da dominação ou das satisfações subjetivas[18].
Reside aí a razão da existência do Estado-juiz, essencial para a reafirmação do ethos, enquanto instância gerida pela razão prática e distanciada das razões poiéticas, que serviram como força para desviar os indivíduos do ethos. O Estado-juiz (imparcial e regido pelo princípio do juiz natural) deve distanciar-se das razões de ordem utilitarista motrizes das ações das partes, buscando, essencialmente, a reafirmação do ethos, estimulando, no caso concreto, a
possibilidade do encontro com o outro como encontro de natureza ética ou moral, que é forma mais alta da relação intersubjetiva. Formas inferiores do encontro que se desenrolam na esfera do útil só podem adquirir uma dimensão ética se sobrelevadas ao nível de universalidade da razão prática em que a gratuidade do bem se sobrepõe ao interesse do útil.”[19].
Como visto no capítulo anterior, a lei é a forma encontrada, pela sociedade política, de expressão simbólica do horizonte comum de universalidade, atribuindo-se ao judiciário o monopólio de declaração da expressão desta universalidade, nos casos concretos, na medida em que as outras formas de solução dos conflitos (autocomposição, autodefesa ou autotutela[20]), dada a indissociabilidade entre as razões poiéticas e a própria técnica de solução do conflito, não conseguiriam obter o melhor termo de justiça.
Dentro da proposta de compromisso da jurisdição com o resgate da consciência-de-si dos sujeitos, sobreleva-se a importância da jurisdição voltada para a consecução de uma educação ética que viabilize o exercício dos próprios direitos e de respeito aos direitos alheios. Como adverte LIMA VAZ,reconhecer a aparição do outro no horizonte universal do Bem e consentir em encontrá-lo em sua natureza de outro Eu, eis o primeiro passo para a explicitação conceptual da estrutura intersubjetiva do agir ético[21]. Observado, apenas, sob esta ótica – de estímulo à relação do reconhecimento -, que o processo cumpre sua função ética, ou seja, que o procedimento realmente atinge seu fim, enquanto que o escopo principal do processo – que levará aos demais – é o escopo educacional.
A sociedade política erradicou a violência através da lei, e só através da efetiva observância da mesma erradicar-se-á o conflito nos casos concretos. Não se atinge a paz, sem o efetivo compromisso com a ética, que tem como parâmetro jurídico seguro a lei.
Se o meio alternativo de solução de conflito não consegue afastar-se das razões poéticas dos sujeitos, com efetivo resgate do ethos, definitivamente, não se atingirá o escopo de pacificação das relações sociais. Precisamente por isso, os meios alternativos são relegados, regra geral, àquelas esferas de menor irresignação social quanto ao descumprimento do preceito de justiça, a observar-se no âmbito dos chamados direitos disponíveis.[22] Vale ainda fazer remissão ao fracasso da instituição do chamado meio alternativo na esfera dos direitos indisponíveis, como os direitos trabalhistas. A adoção das chamadas Comissões de Conciliação Prévia tem encontrado grande resistência, justamente, em razão das injustiças perpetradas nesta seara.[23]
É neste sentido que se deve considerar a função instrumental do processo, enquanto instância de verdadeira atuação do direito material. Não se pode subverter esta vinculação e compromisso do direito processual, com o direito material, de forma a fazer com que aquele passe a ser produtor deste. GONÇALVES adverte que
o direito material, enquanto cânone de conduta e de organização social, será fator de transformação, se assim for construído pelos seus destinatários, que são também os seus criadores. O processo, como instrumento disciplinado pela lei para permitir a manifestação do Poder Jurisdicional, chamado a resolver os conflitos, onde as autocomposições falharem, é o instrumento pelo qual o Estado fala, mas é, também, instrumento pelo qual o Estado se submete ao próprio Direito que a nação instituiu. E esse Direito é o único poder capaz de limitar a atuação do Poder.[24]
O processo tem uma finalidade, e o procedimento, para alcance desta finalidade faz parte do conceito do processo, dada a sua necessária funcionalidade para consecução daquele fim. Em outras palavras, toda alteração procedimental deve estar presa ao escopo do processo de realização da justiça, não devendo nunca se enxergar como mera manifestação exterior do processo[25].
A ocorrência de um litígio revela, necessariamente, que os indivíduos envolvidos na relação – ou, pelo menos, um deles -, agiu em regressão a um bourgeois, no sentido hegeliano,[26] e não como um verdadeiro cidadão. Cabe ao Estado, pela sua função jurisdicional, estimular a conscientização da substância ética que resgate aquele indivíduo como cidadão – o que se fará através do contraditório no processo, verdadeira dialética pautada no “reconhecimento” (do outro como outro eu), em consonância com o auto-desígnio da comunidade ética, como um todo, disposto na lei.
A nota ética do processo está no contraditório. O processo deve ser assimilado como oportunidade madura que as partes têm para representar a conduta que defendem ser jurídica. Essa oportunidade deve servir, também, como momento de auto-crítica das condutas colocadas sub-judice, pois, quanto mais a representação em Juízo revela vínculos poiéticos e carregados de interesses individuais da conduta, em distanciamento do ethos, mais a parte poderá esperar um provimento jurisdicional desfavorável. Daí, o escopo educacional do processo, que se revela em todo o procedimento, e não apenas no provimento final.
No processo, o Estado-juiz garantirá igual oportunidade de representação das condutas postas, sub judice, pelas partes, ou seja, garantirá o contraditório. Só através do contraditório é que se viabiliza, no processo, a interlocução entre duas razões (dia logos)[27]. Segundo LIMA VAZ, “o diálogo é fundamentalmente um evento de natureza ética e é por ele que a estrutura intersubjetiva do agir ético primeiramente se realiza[28]”. O contraditório constitui, assim, o veio de estímulo à relação de reconhecimento (educação ética), a ser alcançado de uma forma reflexiva, pelos litigantes[29].
O contraditório, enquanto garantia de igual oportunidade de representação da realidade no processo, constitui ponto nodal para a justiça do processo, compreendida esta como a eficácia endoprocessual do procedimento de viabilizar às partes o encontro da consciência-de-si que deve vigorar – norte que se cumpre, de forma mais eficaz, se for encontrado, autonomamente, pelas partes, no curso do procedimento (conciliação, quando esta é resultante de consenso). Se, no curso do processo, as partes encontram esse termo de verdadeiro consenso, o procedimento chegou à sua finalidade imanente, sem a necessidade da substituição judicial. A assimilação, pela reflexão, assim, pode ser de tal forma eficiente, que as partes cheguem ao consenso (livre expressão da consciência-de-si no reconhecimento do outro). Caso não se chegue ao consenso, a reflexão não perde importância, pois ela viabilizará melhor aceitação da expressão, por parte do Estado-juiz, daquilo que significaria a singularidade na conduta colocada sub judice, ou seja, aquilo que seria obra própria da razão prática (e não razão técnica), no particular, e que equivaleria à consciência moral social.
Se as partes não apresentarem maturidade suficiente para alcançar o consenso a partir da reflexão instigada no contraditório, o equivalente[30] deve ser imposto pelo Estado-juiz, mas sempre a partir de dois pressupostos: a) da representação da realidade levada pelas partes – pois, é abstraindo as razões poiéticas dessa realidade representada que o Estado-juiz encontrará o termo de justiça que deveria ter regido a relação colocada sub-judice; b) do horizonte universal do bem, objetivado na lei, pois ele será o parâmetro para o juiz separar as razões éticas das razões poiéticas, determinantes da conduta colocada sub-judice.
Com esta reflexão torna-se claro que, efetivamente, a natureza jurídica do processo está no contraditório. O traço distintivo do processo, como espécie de procedimento, estaria na participação na atividade de preparação do provimento, dos “interessados”, juntamente com o autor do próprio provimento[31], e as reformas técnicas que suprimem esta nota devem ser sopesadas, já que alcançam a própria essência do processo.
Em termos, se efetivamente precisamos buscar reformas que visem uma maior celeridade do processo, temos que ter cuidado com o diagnóstico do problema – já que, como visto anteriormente, a morosidade do judiciário está muito mais associada a um problema ético-político da sociedade, do que propriamente a um problema técnico-processual.
A par dessa reflexão, contudo, instituiu-se no Brasil aquilo que resolveram denominar “Processo Sincrético” e implantou-se um modelo judiciário híbrido (com adoção de instituto próprio à common Law, a súmula vinculante).
III – O “Processo Sincrético”.
A palavra “Sincretismo” faz referência a um sistema de conciliação de doutrinas distintas. Etimologicamente, a palavra provém do grego antigo sinkretismós, coalisão de dois adversários contra um terceiro.[32]
Dentro da tradição brasileira, a palavra sincretismo esteve quase sempre associada ao chamado hibridismo religioso, cuja ocorrência teve ênfase na Bahia, tratando da mistura de religiões tradicionais africanas com rituais da Igreja Católica[33].
FERRETI, estudioso do sincretismo religioso no Brasil, aduz que na antigüidade, conforme seu sentido etimológico, significava “junção de forças opostas face ao inimigo comum”. A partir do século XVIII, tomou caráter negativo, passando a referir-se à reconciliação ilegítima de pontos de vista teológicos opostos, ou heresia contra a verdadeira religião. [34]
A expressão sincrético, portanto, representa um signo de comunicação carregado de conotação própria, segundo desígnio histórico. Foi utilizada pelo mundo jurídico por diversos processualistas[35] que a consideraram apropriada para designar o novo modelo processual, no qual se fundiram processos de conhecimento e execução.
Impertinente, contudo, associar o novo modelo processual ao conceito da expressão “sincrético”.
Isto porque não podemos sugerir que o processo seja concebido como resultado da união de elementos de duas doutrinas distintas, como “junção de forças opostas”.
A alteração legislativa que unificou processos de conhecimento e execução, realmente, apresenta-se como divisor de águas na disciplina processual, mas isto não desnatura a essência e, portanto, o conceito de processo, que continua a representar, simplesmente, um procedimento em contraditório, na forma defendida por GONÇALVES[36].
Numa concepção de processo ético, a função executiva deve estar sempre associada à função cognitiva, já que apenas a partir da eficácia do dado educativo-reflexivo da jurisdição que podemos esperar a autoridade impositiva do provimento jurisdicional, a prevalecer mais pela razão e menos pela força.
Se se pretende compreender sincretismo processual como representativo da junção de elementos de duas doutrinas antagônicas (fase cognitiva X fase executiva), na falsa impressão de que o caminho para se alcançar a efetividade do processo perpassaria por um enxugamento da fase cognitiva, com redução de momentos de exercício do contraditório (verdadeira natureza do processo), segundo visão distorcida de que estes representariam pontos de estrangulamento, frente ao grande redentor da eficiência processual, a fase executiva, fatalmente a única mudança que poderemos esperar com as recentes alterações legislativas será uma piora do sistema jurisdicional como um todo.
Não estamos aqui defendendo que as “ondas reformistas” do Código de Processo Civil, procedidas a partir da década de 90 (principalmente, após a adoção do instituto da antecipação de tutela, com a lei 8.952, de 13 de dezembro de 1994), e que culminaram neste novo modelo de processo, tenham sido ruins. Apenas, sustentamos que o reforço ao instrumento coercitivo (função executiva) não pode representar desprezo à importância da eficácia pelo convencimento (função cognitiva).
O enxugamento da fase de conhecimento se apresenta como uma tendência clara. A última reforma do CPC, em dezembro de 2009, dentre outras diversas que a antecederam, revela esta circunstância[37]. A lei 11.232, de 22 de dezembro de 2005 determinou a mudança de paradigma, complementando reforma do sistema de execução iniciado com a lei 10.444, de 07 de maio de 2002. Evoluiu-se da autonomia de processos, para fases de processo uno.
Revela-se, assim, uma tendência de se buscar efetividade do direito material, desvinculada de uma visão processual segmentada de forma estanque. Ampliou-se a discricionariedade do magistrado para interferir de forma direta e imediata no mundo dos fatos. Alterou-se a cultura processual de ônus do tempo do processo, que pode passar a recair, cada vez com maior facilidade, sobre o réu, ao invés do autor, com base em uma avaliação preliminar da ocorrência de verossimilhança e periculum in mora. Aumentaram as hipóteses de reversão patrimonial na execução provisória (art. 475-O, do CPC, incluído pela lei 11.232 de 2005).
Experimentamos, assim, estágio de sedimentação de nova cultura processual, que apenas se mostrará propositiva, caso as reformas de técnica procedimental sejam utilizadas em estrito compromisso com a essência ética do processo.
A hermenêutica processual mostra-se cada vez mais complexa. O pedido de antecipação de tutela ou de concretização antecipada de provimento judicial, que se mostrava praticamente impossível, até uma década e meia, e exceptuativa até os últimos cinco anos, hoje revela-se praticamente como regra.
Não se pode perder de vista, contudo, que, se tutela tardia nunca representa uma tutela justa, a tutela rápida, pela simples celeridade, não atende ao preceito de justiça. A medida antecipatória deve merecer, sempre, fundamentação que atenda ao escopo de pacificação social pela via educacional-reflexiva, pelo que não pode ser sinônimo de “decisão precária”. De qualquer forma, a sua prolação nunca pode significar resposta duradoura do Estado. Ou seja, a existência de uma decisão antecipatória não pode representar escusa para justificar retardamento da prestação jurisdicional exauriente.
Importa ao processo que este conte, não só com uma decisão rápida, mas principalmente justa, ou seja, que esta reflita a aplicação do direito, interpretado pelos cânones hermenêuticos, frente à retratação fática democraticamente retratada pelos litigantes.
Aqui, o debate acerca das reformas remete-nos a outra alteração de instrumento da técnica processual que atende à tendência antecipatória e pragmática, e que também afeta diretamente o potencial de justiça das decisões. Tal reforma transcende a possibilidade dos litigantes sofrerem materialmente os efeitos da jurisdição, antes de se esgotar, ou até mesmo de se oportunizar a prática de atos que, no processo, se apresentam como faculdade de participação na construção do provimento. Trata-se da possibilidade de restringir ou eliminar a construção de um julgamento, pela simples adoção de um “pré-julgado”.
IV – Da Súmula vinculante.
A jurisprudência reflete a reiterada aplicação do direito pelos Tribunais. A reflexão acerca de sua natureza conduz à reafirmação da tarefa interpretativa do direito, procedida pelos Tribunais, que só atuam, eticamente, se não quebrarem o movimento dialético do direito, de constante busca do ethos, desde sua forma mais universal, respeitando o movimento de práxis do ético, sem adotar a impossível pretensão de fixar a sua retratação cultural no curso histórico (jurisprudência “consolidada” significativa de jurisprudência imutável).
Como sustentado neste trabalho, estamos vivenciando um momento de conflito ético no direito, instaurado pela desvalorização das instâncias reflexivas, viabilizadas pelos institutos designadores da razão reta, na comunidade ética, movimento que leva a um rompimento entre a real instância legitimadora da lei (a de representar a forma de ação justa, na correlação entre a gênese histórica da lei e do direito e a essência moral do ser humano), em prol do reforço daquilo que não deveria passar de uma mera propriedade dos institutos, qual seja, o caráter coercitivo dos mesmos.
O poder deve legitimar-se na virtude da justiça por ele praticada, e não na força que deve ser assumida como mera instrumentalização para prática da justiça e de instigação e estímulo à conduta ética (educação ética). Deve-se respeitar a necessária vinculação existente, entre os institutos e os valores ou Bem Comum, priorizando o estímulo à educação ética, como forma de atuação dos institutos, e não tomar a força como instância de preservação dos mesmos. O Direito sucedeu à força, com o regramento da conduta social, norteado por poder conduzido segundo os ditames da razão, e não consegue sustentar-se com o retorno ao uso da força, como o próprio instrumento de condução do poder.
Dentro das instituições do direito, a reforma do judiciário, com a adoção da jurisprudência vinculante[38], e o constante reforço do incidente de uniformização de jurisprudência, como veículo jurisdicional (instância de prática de justiça inter partes), rompe com o próprio compromisso de preservação institucional (Instituição maior – Constituição) afeto à função jurisdicional.
O conflito dá-se na medida em que se tenta fragilizar e negar o próprio papel do ethos, no processo dialético, sobrepondo o peso da técnica (coerção, ou dado vinculante dotado à súmula), como se fosse ela própria o fim da atuação do direito.
A ética, como define BITTAR, “é um saber que se verte e se direciona para o comportamento.”[39] Comportamento aí entendido o humano, enquanto que apenas este exerce, conscientemente, a liberdade – e, como afirma ALVES, “sem liberdade não há ética”, enquanto que “a liberdade supõe alternativas” e se concretiza com a escolha, decisão procedida pela valoração de coisas e ações, do que decorre que “não há liberdade sem valoração”[40].
Importa à Ética a atuação livre do homem, pois a mesma reflete a própria manifestação do ethos determinante de uma conduta virtuosa no indivíduo, ou justa na sociedade. O ethos é “inseparavelmente, social e individual.”[41]
O problema conceitual da jurisprudência não pode isolar-se da ética, numa premissa de que a jurisprudência “reporta-se a uma realidade axiologicamente neutra de per si, se considerarmos que uma coleção ordenada de acórdãos reiterados e consoantes de um Tribunal ou de uma Justiça, sobre um mesmo tema, não comporta valoração como boa ou má”[42].
A circunstância de a jurisprudência ser vista como simples técnica é que tem conduzido à sua utilização e conformação de modo equivocado, pois sempre que a técnica jurídica se afasta do necessário dado axiológico do direito, este foge de sua base de legitimação.
A experiência jurídica referente à jurisprudência revela, num estudo etiológico[43] da palavra, a sua origem romana[44], advindo de juris + prudentia, expressando o poder dos jurisconsultos (prudentes) de dizer o direito. Assim é que, desde o período Romano, à palavra jurisprudência emprestam-se diferentes significados[45], todos eles, contudo, presos à questão da gênese e dicção do direito.[46] Quanto ao período anterior a Roma, contudo, MANCUSO, citando Paulo Dourado de Gusmão, observa que “não se pode falar em jurisprudência, pois na Grécia, onde as idéias políticas e filosóficas se desenvolveram, a jurisprudência se confundia com ética, com investigações sobre a República perfeita, a lei justa, a justiça considerada como virtude”[47].
A nosso ver, o grande problema da jurisprudência, ao longo dos tempos que sucederam ao período Grego, foi exatamente o de afastar-se de seu compromisso com a lei justa, dentro da noção de justiça idealizada a partir da polis, no período clássico, distanciando-se de uma concepção ética do direito para se aproximar cada vez mais de uma concepção simplesmente tecnicista[48], hoje vigorante, no sentido de que, para constituir-se jurisprudência, basta que a realidade expressada por esta palavra represente a tradução do resultado da atividade jurisdicional dos Tribunais, numa ocorrência harmonicamente reiterada. Assim é que, modernamente, o significado de jurisprudência, “no sentido técnico-jurídico” (grifamos), seria de uma “coleção harmônica e sistemática de acórdãos reiterados sobre uma dada matéria.[49]”
O conceito técnico de jurisprudência indica, assim, a existência de dois pressupostos, cuja verificação é necessária à sua conformação, quais sejam: a) a existência de questões de fato similares, ensejadoras de reiteradas provocações do judiciário; b) decisão, pelos Tribunais, da aludida questão, em linha uníssona.
A jurisprudência, mais do que simples amontoado de Acórdãos, apresenta-se como verdadeira expressão cultural da comunidade jurídica; e, certamente, tal expressão fica tão mais expressiva e menos suscetível às episódicas contingências da realidade histórica, quanto mais ganha um cunho de abstração e universalidade, distanciando-se das particularidades dos fatos.
Na atividade jurisdicional, o juiz mais preso ao fato, dada a principiologia processual, é o juiz de primeiro grau, circunstância que se atenua no segundo grau de jurisdição – que não obstante figure, normalmente, como instância ordinária, encontra-se presa aos limites fáticos retratados na 1ª instância, só se justificando, num compromisso de busca da justiça, a substituição (ou, como alguns preferem, a reforma) da decisão de primeiro grau, na presunção de retratação, em segundo grau, dum melhor sentido da razão reta, disposta na lei, diante dos fatos valorados.
O juiz de primeiro grau encontra-se tão preso ao fato que é ele o revestido de poderes instrutórios, dirigindo a representação da realidade, no processo, segundo o princípio da imediatidade da prova. É ele o responsável pela conciliação, no processo, fruto do estímulo à atividade reflexiva das partes, diante do ditame da razão reta, disposta na norma enunciada de forma isenta por agente desinteressado. Para alcançar este objetivo, o juiz da causa deve conhecer os usos e costumes a generalizarem a auto-determinação da vontade por aquela comunidade, com maior facilidade de apreensão das normas locais, assumindo compromisso de resguardo, não só das normas mais universais, mas, também, daqueles institutos, esfera de conhecimento que se imiscui nos graus superiores de jurisdição, ocupados cada vez mais com as normas de cunho mais universal, até o extremo do Supremo Tribunal Federal, ocupado com a preservação da Instituição de maior universalização, a Constituição.
Nos Tribunais, os limites do princípio da persuasão racional estreitam-se, em relação à primeira instância, enquanto que a imediatidade da prova, nesta instância, permite uma série de delineamentos e esclarecimentos acerca dos fatos – impossível na segunda instância, que se atem à realidade tal qual retratada no primeiro grau.
Os Tribunais Superiores, por sua vez, distanciam-se ainda mais do fato – a eles não compete, em regra, a reapreciação de tal matéria-, diminuindo, ainda mais, em relação aos mesmos, a amplitude da persuasão racional em relação ao caso concreto.
A origem de tais Tribunais não está ligada, assim, à realização da justiça inter partes, em cada caso concreto, mas sim ao resguardo do sentido de universalidade do direito – o que se verifica, de forma mais nítida, na atividade do Supremo Tribunal Federal, enquanto instância de zelo da Constituição, sentido único da existência de todos os Poderes e institucionalização maior da expressão ético-política da sociedade.
Assim, a jurisprudência encontra tanto mais espaço de institucionalização, quanto mais se distancia das particularidades do fato, e aproxima-se do caráter de universalidade da norma – o que viabiliza sua melhor expressão nas instâncias superiores. A jurisprudência, enquanto dado cultural, representará a reafirmação do ethos objetivado na norma, purificado a partir do distanciamento das razões poiéticas desvirtuadoras da razão reta, em cada caso concreto.
A jurisprudência, assim, apesar de tecnicamente poder ser conceituada como resultado da atividade jurisdicional dos Tribunais, numa ocorrência harmonicamente reiterada, teria o seu real significado preso à concepção emprestada à atividade jurisdicional – ligado a uma tarefa conceptiva do direito, para a teoria unitária, e à tarefa interpretativa de direito pré-existente, de acordo com a teoria dualista.
A reiteração de situações similares a demandar tal interferência do judiciário, nestes moldes, acaba por ensejar a construção da jurisprudência, enquanto resultado histórico positivo e atuante da permanente reconstrução do ethos.
Não pode a jurisprudência, contudo, enquanto técnica de atuação do ethos objetivado, primariamente, no universal concreto da lei, pretender assumir a própria posição da lei ou fonte – o que engessaria o sistema.
A jurisprudência, portanto, é um espelhamento da leitura, pelos Tribunais, do que seria uma repetição cotidiana de uma atuação ética do direito. Tal leitura procedida pelos Tribunais, contudo, nunca vai mediatizar, conceitualmente, o ethos, da mesma forma que a lei, de forma a fazer que esta se torne prescindível no processo de reconstrução permanente do Direito[50].
O conteúdo político do símbolo, assim, será determinante, para apresentar a dimensão objetiva do mundo ético, pelo que mister se faz precisar a carga política existente no símbolo de linguagem expressado na lei e na jurisprudência.
A jurisprudência, enquanto resultante da reiteração da aplicação de um preceito do dever-ser a casos concretos, encontra-se intrinsecamente maculada com o dado contingente e exposta à motivação empírica – o que, dentro de uma concepção Kantiana[51], seria suficiente para afastá-la da vontade pura (boa vontade), única passível de ser assumida como imperativo (sollen), enquanto que o dever dá-se no sujeito dentro de um princípio de autonomia – correlação, entre vontade pura e lei universal, na qual a vontade se autodetermina pela lei, sendo, portanto, autolegisladora.
Como adverte LIMA VAZ,
a vontade autônoma é a boa vontade simplesmente tal cuja lei é o imperativo categórico, enunciado logicamente como juízo sintético a priori da Razão pura prática. Com efeito, nele o predicado da boa vontade participante de uma legislação universal não pode ser analiticamente deduzido de uma vontade afetada por motivações empíricas[52].
Dentro de um regime democrático, apenas na lei seria admissível a existência da vontade regida pelo princípio da autonomia. A autodeterminação constitui nota essencial da democracia. A democracia é um conceito político que figura como a forma mais adequada de expressão da dignidade humana[53].
A preservação da democracia, no judiciário, num sistema de civil law, não está na questão da representatividade, mas na própria vinculação desta função de poder à expressão mais democrática de auto-regulamentação popular, através da representatividade: a lei. Através da lei, o judiciário recebe, de forma democrática, o caráter institucional de preservação da própria lei[54].
O judiciário não exerce o poder que lhe fora conferido pela lei, enquanto não provocado, em razão de demanda do mundo dos fatos – pelo que o resultado da atuação jurisdicional sempre estará preso ao mundo empírico, e a análise dos diversos provimentos jurisdicionais análogos, observada a determinante da experimentação prática, nunca terá o condão de ato de vontade autônoma, legítima postura do dever-ser num processo dialético de liberdade[55]. Ao contrário: a atuação do Estado, pelo judiciário, constitui atuação heterônoma, que só assume legitimidade por estar prevista na lei (ou seja, na auto-normatividade). O Estado-juiz impõe aos litigantes uma solução para o litígio, solução que não deverá representar a vontade de qualquer das partes – enquanto que a vontade dos sujeitos, na hipótese sub judice – ou, de pelo menos um dos sujeitos -, não representa autônoma representação da lei – mas, ao contrário, deverá expressar a melhor explicitação da lei, enquanto que única expressão de cunho universal autônomo, livre expressão de dever-ser. A partir do momento em que temos a atuação do Estado-juiz, o resultado não mais retratará comando do dever-ser livre, tal qual a lei – pelo que, ao procurar-se no consenso analógico de julgados, no mesmo sentido, uma força normativa, está-se violentando a própria premissa de liberdade do dever-ser.
O juiz, portanto, não cria a norma a vigorar naquele caso concreto. Admitir-se o contrário equivaleria a aceitar que o sujeito não teria tido a oportunidade, quando da ocorrência do fato, de atuar conforme a norma, ou seja, de atuar livremente, como autodeterminado, de atuar eticamente.
A única analogia[56] possível, entre o legislativo e o judiciário, prende-se à condição de figurarem como funções de poder instituídas, não havendo, contudo, possibilidade de se proceder à comparação de suas atividades.
O Direito sempre estará ligado à atividade mediatizadora do Bem, empreendida pela lei. O Direito nada mais é que do que a medida de justiça[57]. A ligação do Direito a essa atividade, contudo, não se esgota na objetivação primeira da universalidade do Bem, (ou seja, na determinação do conteúdo da norma, que passará à condição de fonte do direito[58] pela atividade do legislador) – enquanto que, além das normas, o direito cuida, também, das instituições que garantam sua observância. A norma, enquanto tal, não se apresenta como instância suficiente para garantir a relação de reciprocidade na comunidade, legitimando, assim, a existência de instituições eficientes de estabilidade e permanência do corpo social. A lei constitui a forma prioritária dessas instituições. Daí a precedência do legislativo (ainda que na forma de poder constituinte[59]- poder essencialmente político, como observa BONAVIDES[60]), enquanto instância legitimadora das demais funções de poder (executivo e judiciário), como instituições ligadas à consecução desse escopo da lei (“assegurar ao reconhecimento e ao consenso um quadro estável de exercício[61]”).
A atividade legislativa, para ser eficaz, em seu escopo, deve preceder à conduta. Nesta premissa reside o princípio da irretroatividade da lei, com a garantia do ato jurídico perfeito, direito adquirido e coisa julgada, bem como a utilidade da vacatio legis.[62]
A atividade jurisdicional, diversamente, exerce a função constitucionalmente instituída, apenas, quando se noticia fato que revela inexistência de espontânea atuação de pessoa jurídica, em conformidade com a razão reta instituída (seja de forma mais evidente e grave, lesando o próprio instituto constitucional, seja em violação à reta razão infra-constitucionalmente instituída). A reflexão que se instiga, na função jurisdicional, é necessariamente secundária, enquanto que se deve presumir que as partes envolvidas no litígio possuíam parâmetro normativo para agir segundo a recta ratio.
A jurisprudência integra o universo do direito, enquanto abstração, viabilizada por meio de reiteração do resultado dessa instigação reflexiva secundária que se promove na função jurisdicional do poder instituído. Enquanto resultado de uma instigação reflexiva secundária, a mesma não pode pretender assumir o posto da instigação reflexiva primária, sob pena de se romper todo o sistema acima exposto. A publicização da súmula de jurisprudência, como parâmetro primário de conduta, segundo a razão reta (o que se faz conferindo-se à mesma caráter vinculante, ou de fonte formal do direito) choca-se com o próprio pressuposto de existência de uma comunidade ética, pois, a súmula apresentar-se-ia como o signo de inexistência precedente de parâmetro normativo, objetivado para orientar conduta segundo a razão reta (ou conduta ética), pois, caso o mesmo existisse, despicienda seria a própria jurisprudência vinculante.
A jurisprudência vinculante, enquanto expressão de dever-ser, desvinculada de pressuposição de existência de parâmetro do bem comum, objetivado legalmente, reflete a tendência de acumulação de poder em distanciamento da sociedade civil[63], que só se “justifica”, sob a ótica individualista de reforço do poder, no momento em que o mesmo seria alvo de crítica, pela sua morosidade e ineficiência.
Transparente se torna, assim, a violência processada com a adoção do remédio paliativo dos pré-julgados – que, como o próprio nome indica, negam a aplicação do direito, nos casos concretos, na medida em que o momento de síntese (julgado) é dado, antes mesmo (pré) de iniciar a subsunção das premissas maior e menor.
O judiciário, quando aplica o direito, procura corrigir distorções resultantes do excesso (hybris) do indivíduo, quando o movimento do desejo, no mesmo, não foi regido pelo métron da virtude. A tanto procede porque constituindo para isto na lei como função de poder[64].
É à Política, contudo, que se reserva a tarefa da correção dos excessos (hybris), no seio da comunidade (violência), o que procederá, tanto melhor, quanto mais eficazes forem seus instrumentos (verificados no direito) para instigarem a referida tarefa[65]. Como adverte LIMA VAZ, assim como, no indivíduo, o movimento do desejo tende ao excesso e deve ser regido pelo métron da virtude, assim a dinâmica do poder é habitada internamente pela desmesura ou a hybris da violência e deve ser regulada internamente pelo logos presente na lei.
A jurisprudência, decorrendo única e exclusivamente da reiteração de julgados, num mesmo sentido, identificará a postura assumida por diferentes julgadores, diante de casos concretos similares. Não está na origem da jurisprudência, assim, a correção de excessos na coletividade, mas no indivíduo, sempre com fundamento do expressado, como justo, na coletividade – do que se extrai seu distanciamento da política, quanto à sua função.
Por certo que este distanciamento é limitado, pois a lei justa refletirá, sempre, no âmbito da comunidade, ação análoga à da virtude, no indivíduo. Poder-se-ia argumentar, assim, que ao se declarar a ação virtuosa do indivíduo, o que se declara, também, é a própria razão do ethos, que é a mesma razão do que deve ser assumida como justo na coletividade (e, portanto, na lei, pela política). O que não se pode esquecer, contudo, é que essa ação não deve ser assumida como virtuosa e justa, porque o judiciário assim a declarou, mas, ao contrário, o judiciário só pode afirmá-la, como virtuosa, enquanto correspondente ao que previamente a política definiu como justo[66].
O judiciário, sem a lei, com efeito, perde o parâmetro de definição da conduta virtuosa. A reiteração de afirmação de condutas virtuosas, em casos individuais, não passa de reiteração de afirmação do que já está contido na lei justa, do que decorre a desnecessidade e impossibilidade de se emprestar força normativa a essa reiteração de julgados.
Conclusão.
O problema da política moderna deve ser assumido e resolvido, enquanto tal. Impossível ao Judiciário resolver o problema da ausência de legitimidade normativa material, através do seu instrumento de técnica, a coerção. Lado outro, não pode o judiciário – que encontra sua legitimidade na própria política – arrogar-se a corrigi-la, através da entronização da jurisprudência, como instância normativa, substitutiva da própria lei. O aprimoramento da nota de promoção da estabilização institucional da política, pelo direito, não pode ocorrer no desapego entre o estabilizante (direito) e o estabilizado (universal, politicamente determinado). Não se podem centralizar esforços na idéia de segurança jurídica, preterindo a idéia de justiça, entendida esta como consciência moral social fixada no seio da comunidade ética pela política.
Não é a fixação do estável que leva ao justo, mas sim a assimilação do justo que leva à estabilidade.
O direito não pode desvincular-se do seu necessário intercâmbio com a atividade política, para que ambos consigam atingir a paz, no convívio social.
A coerção deve ser utilizada no direito, sempre, em compromisso com o instituto politicamente designado, fazendo-se uso da força para estabilizar aquilo que a sociedade política institucionalizou, como dado a ser preservado, apresentando-se como tautológica a utilização da coerção compromissada, apenas, com a manutenção da estabilidade, como se esta fosse um fim em si mesma.
O jurídico só viabiliza a paz social, instaurando a justiça, se configurar expressão mais bem acabada da instituição política, dotada, por esta razão, da força coercitiva.
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1]Disponível em: http://datafolha.folha.uol.com.br/po/ver_po.php?session=935(17/02/2010) [2]Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Fernando_Collor_de_Mello(16/02/2010) [3]Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ibsen_Pinheiro(16/02/2010) [4]Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_Carlos_Magalh%C3%A3es(16/02/2010) [5]Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jos%C3%A9_Roberto_Arruda(16/02/2010) [6]Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Joaquim_Roriz(16/02/2010) [7]Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Jader_Barbalho(16/02/2010) [8]Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Renan_Calheiros(16/02/2010) [9]Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Esc%C3%A2ndalo_dos_atos_secretos(16/02/2010) [10]Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Anexo:Lista_de_esc%C3%A2ndalos_pol%C3%ADticos_no_Brasil(16/02/2010) [11]Disponível em: http://www.transparencia.org.br/docs/excelencias.pdf(16/02/2009). [12](DINAMARCO, Cândido, 2002). A respeito da tarefa educadora do direito, SALGADO adverte que a “educação só é possível na sociedade, uma vez que é formação recebida do outro. O direito é uma forma que torna possível que o homem alcance sua maioridade, a fim de que seja livre. O direito desempenha também essa tarefa educadora para a liberdade, que coexiste com o aspecto taliônico da sanção penal. (SALGADO, pág. 279). [13](LIMA VAZ, 2002, pág. 185). [14](LIMA VAZ, 2002, pág. 240). [15](SALGADO, 1996, pág. 327). [16]Como adverte SALGADO “do ponto de vista subjetivo, a jurisdição é a reconciliação do indivíduo com a lei que é a sua própria proteção. Do ponto de vista do direito objetivo, é a restauração de sua validade.” (SALGADO, 1996, pág. 353). [17](LIMA VAZ, 2002, pág. 243). [18](LIMA VAZ, 2002, pág. 245). [19](LIMA VAZ, 2002, pág. 245). [20]“A eliminação dos conflitos ocorrentes na vida em sociedade pode-se verificar por obra de um ou de ambos os sujeitos dos interesses conflitantes, ou por ato de terceiro. Na primeira hipótese, um dos sujeitos (ou cada um deles) consente no sacrifício total ou parcial do próprio interesse (autocomposição) ou impõe o sacrifício do interesse alheio (autodefesa ou autotutela). Na segunda hipótese, enquadram-se a defesa de terceiro, a mediação e o processo.” (CINTRA, GRINOVER, DINAMARCO, 1998, pág. 20). [21](LIMA VAZ, 2002, pág. 246). [22]O art. 1º, da lei 9.307/96 dispõe que as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis (grifamos). [23]A respeito, pondera Viana que “É claro que – até certo ponto – as comissões poderão descongestionar as pautas e apressar o julgamento das causas não conciliadas. Mas o combustível extra que estará acelerando a judiciária será a perda de direitos por parte de um número bem maior de trabalhadores – aqueles que “transacionaram” os seus créditos. Outro perigo o de que as comissões venham a ser colonizadas pela lógica do mercado, transformando-se no novo nicho de especulação comercial. Nesse caso, é fácil prever que as distorções se acentuariam. Toda ênfase seria dada à quantidade, em detrimento da qualidade dos acordos”. Complementa o autor, adiante: “Perguntaria o leitor: mas haveria alguma diferença entre o acordo feito nas comissões e o que é realizado na Justiça do Trabalho? Até certo ponto sim. Na Justiça do Trabalho, a simples presença do juiz e (especialmente) a ameaça de uma sentença desfavorável podem às vezes inibir o empregador. Assim, é provável que os acordos – mesmo baixos – tendam a ser menos prejudiciais aos trabalhadores. Por outro lado, um processo judicial sempre desgasta a imagem da empresa, e por isso causa um certo stress. Já as comissões legitimam perfeitamente os acordos, mesmo irrisórios, sem aquele desgaste ou stress. Com isso, descumprir a lei pode se tornar um negócio ainda melhor do que sempre foi: tudo pode ser resolvido mais tarde, a preços módicos, sem riscos e constrangimentos, num ambiente bem mais light que o fórum. E com grau bem menor de visibilidade”. (VIANA, 2002, 1447). Os problemas acerca da concessão de direitos indisponíveis levou à edição da Portaria 329, do Ministério do Trabalho, que dispõe, em seu art. 11, que “A conciliação deverá cingir-se a conciliar direitos ou parcelas controversas, excluídos de eventual transação direitos ou parcelas líquidas e certas, a exemplo de saldo de salário e férias vencidas.” A respeito, vale transcrever a seguinte passagem de LIMA VAZ: “o grande desafio que se apresenta à comunidade ética como lugar concreto de efetivação do reconhecimento e do consenso é preservar, em meio às ambigüidades das situações, o espaço de uma autêntica reciprocidade no agir ético de seus membros. Seria arriscado e mesmo ineficaz, como atesta a experiência repetida de cada um, confiar aos indivíduos, envolvidos na particularidades das situações infinitamente diversas, a preservação do espaço social da reciprocidade, ou seja, a permanência no tempo da natureza ética da comunidade. Daqui a invenção, historicamente decisiva, da norma e da instituição que, surgindo ao termo do movimento dialético do consenso ao nível da universalidade do agir ético, comprovam no nível da particularidade das situações históricas, da comunidade sua função estabilizadora e mantenedora do consenso em sua essencial reciprocidade.” (LIMA VAZ, 2002, pág. 254). [24](GONÇALVES, 1992, pág. 12). [25]Como muito bem observou GONÇALVES, a doutrina pátria, em sua expressão mais jovem e brilhante, aprofundou o conceito de procedimento como “meio extrínseco” de desenvolvimento do processo, “meio pelo qual a lei estampa os atos e fórmulas da ordem legal do processo”, até reduzi-lo a manifestação exterior do processo, “sua realidade fenomenológica perceptível”. Em contraposição, ao processo é atribuída natureza teleológica, “nele se caracteriza sua finalidade de exercício do poder”, como “instrumento através do qual a jurisdição opera (instrumento para a positivação do poder)”. A distinção pelo critério teleológico propicia ao processo a abertura de um leque de finalidades, dentre as quais a atuação do direito, mas suscita, dentre outras questões, um problema para o qual não se encontra resposta adequada. É que, se o procedimento se constitui em meio necessário, (pois não se aboliu, ainda, a necessidade da existência do procedimento), para a existência, ou desenvolvimento, ou a ordenação, do processo, tem, então, o caráter teleológico que toda técnica intrinsecamente comporta, como meio idôneo para atingir finalidades. Mesmo considerado como série de atos, como forma de ordenação, como meio de se estamparem os atos do processo, o procedimento estaria impregnado de sentido teleológico, porque sua finalidade, já explícita em sua funcionalidade, não poderia ser negada (GONÇALVES, 1992. pág. 66). [26]Bourgeois é o indivíduo que na sociedade cuida dos seus interesses particulares, sem qualquer consideração da ordem política como um bem comum. Seu interesse é sempre oposto ao da comunidade e só aproveita à comunidade porque sua atividade está inserida num sistema de interdependência, pelo qual o que ele produz é socializado, ou seja, aproveita indiretamente à sociedade. Esse conceito opõe-se não só ao conceito de cidadão no sentido clássico, mas também dialeticamente ao de cidadão na própria concepção hegeliana”. (SALGADO, 1996, pág. 365). [27](LIMA VAZ, 2002, pág. 248). [28](LIMA VAZ, 2002, pág. 249). [29]A respeito, LIMA VAZ observa que tanto o reconhecimento quanto o consenso podem assumir historicamente uma forma espontânea e uma forma reflexiva. A forma espontânea vigora no seio de uma comunidade ética onde o saber ético é suficiente para assegurar a coesão do ethos ali reinante e no qual os indivíduos se sentem espontaneamente integrados. A forma reflexiva é fruto de uma educação ética na qual as razões do ethos devem ser explicitadas e demonstradas, o que ocorre geralmente por meio de uma disciplina intelectual ou de uma Ética (LIMA VAZ, 2002, pág. 250). [30]“quando se trata do mesmo ato que estamos analisando em sua face intersubjetiva, também no reconhecimento e no consenso inteligência e vontade interagem de modo a formar um único espaço intencional de acolhimento do Outro, em sua individualidade singular e única, em sua dignidade de fim e em sua aceitação como participante racional livre da universalidade do bem” (LIMA VAZ, 2002, pág. 247). [31](GONÇALVES, 1992. pág. 113). [32]Disponível em: Http://es.wikipedia.org/wiki/sincetismo(16.02.2009) [33]O sincretismo entre religiões de origem africana e a religião católica, segundo José Beniste “valeu como poderosa arma para os negros manterem suas tradições. Sem ele, provavelmente, nem mesmo teriam podido manter os traços religiosos que ainda hoje se conservam”. http://pt.wikipedia.org/wiki/Sincretismo [34](FERRETTI, 2001. p. 13-26). [35](BEBBER, 2006) [36](GONÇALVES, 1992). [37]Lei 12.122, de 15 de dezembro de 2009, que incluiu como sujeitas aos procedimento sumaríssimo as causas relativas à revogação de doação. [38]Art. 103-A, da CF/88, acrescentado pela EC 45/04, regulamentada pela lei 11.417, de 19 de dezembro de 2006. [39](BITTAR, 2004, pág. 3). [40](ALVES, in BITTAR, 2004). [41](LIMA VAZ, 2002, pág. 38). [42](MANCUSO, 2001, pág. 30). [43]Etiologia como “ciência” da origem das coisas. [44]Em Roma, como observa CRUZ E TUCCI, nasce a “jurisdição como atividade de ius dicere exclusiva dos pontífices, vocacionada ao regramento de fórmulas negociais e a disciplinar a autotutela dos litigantes”. (CRUZ E TUCCI, 2004, pág. 33). [45]LIMONGI FRANÇA esclarece que a palavra jurisprudência pode ser utilizada em cinco acepções: “O primeiro, um conceito lato, capaz de abranger, de modo geral, toda a ciência do Direito, teórica ou prática, seja elaborada por jurisconsultos, seja por magistrados. Teria como correspondente, no passado, a noção apresentada por ULPIANO, de divinarum, atque humanarum rerum notitia, justi atque injusti scientia (Digesto, I, 1, 10, 2, repetida por JUSTINIANO (Institutas, I, 1,1), noção esta posteriormente impugnada por HEINÉCIO, que aí viu uma definição ampla demais, capaz de abranger a própria ciência da Filosofia (v. Recitationes in Elementa Júris civilis, par. 24 e 25, ed. Coimbra, 1817). O segundo, ligado à etimologia do vocábulo que vem de júris+prudentia, consistiria no conjunto da manifestação dos jurisconsultos (prudentes), ante questões jurídicas concretamente a ele apresentadas. Circunscrever-se-ia ao acervo dos hoje chamados “pareceres”, quer emanados de órgãos oficiais, quer de jurisperitos não investidos de funções públicas. O terceiro, o de doutrina jurídica, teórica, prática ou de dupla natureza, vale dizer, o complexo das indagações, estudos e trabalhos, gerais e especiais, levados a efeito pelos juristas sem a preocupação de resolver imediatamente problemas concretos atuais. O quarto, o de massa geral das manifestações dos juízes e tribunais sobre as lides e negócios submetidos à sua autoridade, manifestações essas que implicam uma técnica especializada e um rito próprio, imposto por lei. O quinto, finalmente, o de conjunto de pronunciamentos, por parte do mesmo Poder Judiciário, num determinado sentido, a respeito de certo objeto, de modo constante, reiterado e pacífico. Isto posto, cumpre fique esclarecido desde logo que, ao versarmos o tema desta dissertação, teremos em mente apenas os dois últimos conceitos de jurisprudência, devendo ser feita, a respeito de um como de outro, a seu tempo e lugar, a devida especificação, sempre que tal se faça mister” (LIMONGI FRANÇA, 1974, pág. 145). [46]Como adverte MAXIMILIANO, a jurisprudência“na antiga Roma teve atuação mais larga do que hoje se lhe atribui: assim acontecia, porque aos pretores cabia o jus edicendi: por meio de editos declaravam como seria a justiça administrada no ano futuro, e deste modo completavam e corrigiam o Direito vigente. Dá-se atualmente o contrário: decide o magistrado só em espécie, embora em alguns casos preventiva e prospectivamente, como em hábeas corpus e certos interditos. Entretanto, o faz de modo indireto, implícito; porque os indivíduos sujeitos à sua jurisdição e os respectivos consultores se orientam pela jurisprudência, que é seguida pelos tribunais inferiores”. (MAXIMILIANO, 1980, pág. 176). [47](MANCUSO, Rodolfo Camargo. 2001, págs. 09/10). [48]Em outro trecho, MANCUSO observa que “na idade moderna, a jurisprudência foi acompanhando o envolver do Direito, à medida em que este foi sendo reconhecido como uma disciplina autônoma e distinta de outros ramos de conhecimento, que antes o tangenciavam ou com ele se mesclavam. Nesse sentido, é possível formular esta pontuação: a) Destacou-se o direito da moral, valendo observar que, embora esta e aquele integrem o grande gênero da Ética, diferenciam-se, porém, nisso em que as regras morais não gozam de coercibilidade ou exigibilidade”. (MANCUSO, 2001, págs. 09/10). [49](MANCUSO, Rodolfo Camargo, 2001, pág. 15).
[50]Neste sentido, tem-se que “na estrutura subjetiva da vida ética, tem-se que a práxis e a hexis recebem do ethos seu conteúdo essencial expresso em normas e valores orientados ao Bem – o que torna práxis e hexis virtuosas; o ethos, por sua vez, recebe da práxis e da hexis seu existir concreto, em um constante processo de crescimento ético e formação da personalidade moral do sujeito, sempre mais virtuoso na medida em que se realiza como pessoa em meio à particularidade das condições intrínsecas e extrínsecas, favoráveis e adversas. O existir concreto da práxis e da hexis é situado no mundo e na História, devendo ser aquelas condições que compõem as circunstâncias em que se efetivam o agir e o hábito suprassumidas no horizonte do Bem universal, de modo que o ato singular praticado seja virtuoso ou “ato da vida no Bem”- toda prática ética se traduz, na sua continuidade, como exercício de uma virtude.”(Cláudia Toledo e Luiz Moreira, in LIMA VAZ, 2002, págs. 26/27). [51]A respeito da vinculação da vontade pura com o imperativo, e seu distanciamento da contingência do real, cumpre transcrever a seguinte passagem de SALGADO, “O dever ser decorre da liberdade, ou: o homem deve, porque é livre. A diferença essencial entre ética clássica e ética kantiana está no conceito de liberdade como autonomia; para Kant, o bem que obriga não é algo que está forma da vontade, mas é a própria vontade que é boa em si mesma. A autonomia da vontade, na medida em que ela ganha universalidade pela racionalidade, é o que caracteriza a ética kantiana; o universal está na própria liberdade; nem o universal (como bem) se concebe como algo estranho a determinar a vontade, nem a liberdade é algo contingente e isolado do ato de escolha do “aqui e agora”. (SALGADO, pág. 242). [52](LIMA VAZ, 2002, pág. 84). [53](LIMA VAZ, 2002, pág. 353). [54]“Ao se enfocar a dimensão nitidamente institucional da Justiça (o Poder Judiciário), apreende-se seu caráter específico e a particularidade de sua inserção na sociedade e estado democráticos” (DELGADO, 1993, pág. 13). [55]Nesse sentido, adverte LIMA VAZ, que a crítica kelseniana refere-se ao uso prático da razão pura – “mediante o exame crítico dos usos da razão prática, de mostrar que a razão, na medida em que é empiricamente condicionada ou, em geral, condicionada a posteriori, é incapaz de fornecer à vontade um fundamento para seu agir sob a lei moral incondicionada” (LIMA VAZ, 2002, pág. 84). [56]Analogia aqui utilizada como comparação, enquanto que a busca etimológica da palavra comparação revela que a mesma advém do latim comparatio (“compar, aris, adj. Igual; compar, aris, m. f., companheiro, companheira; comparatio, onis f., comparação, confronto; analogia; comparativus, a, um, adj., que compara, que serve para comparar, comparativo, relativo a comparação; in~comparabilis, is, e, adj., incomparável; compar, posto a~par de, pertence ao grupo de par, paris, igual, atestado desde Ênio (…) Comparatio significa analogia em Cic. Tim., 13. Cf. par (MAGNE, 1961. pág. 190/191), que tem seu significado ligado à analogia. [57]“A justiça apresenta-se, portanto, como a categoria ética fundamental que nos permite pensar no nível da universalidade lógica e do princípio do movimento dialético de sua constituição inteligível a vida ética segundo a estrutura intersubjetiva na qual ela é concretamente vivida. Se o conceito de virtude em geral é a categoria que exprime a mesma universalidade em sua extensão intersubjetiva: vivida comunitariamente, a vida ética como vida virtuosa é, primeiramente, uma vida na justiça” (LIMA VAZ, 2002, pág. 285). [58]Fonte do direito aqui compreendida no seu sentido formal, ou seja, “mecanismos exteriores e estilizados pelos quais as normas ingressam, instauram-se e cristalizam-se na ordem jurídica” (DELGADO, 2003, pág. 140). [59]Respeitando os limites do presente trabalho, restringimo-nos a apresentar a concepção com a qual concordamos de necessária vinculação entre o poder constituinte e a função mediatizadora do ethos que se dá institucionalmente no nível de encontro (com o outro) societário. Não se estenderá o presente estudo, assim, à justificação de tal concepção frente a outras correntes que tratam do poder constituinte a partir de teorias distintas, como as que fundam o poder constituinte em “sistema de crenças” – a respeito pondera LUZIA MARQUES DA SILVA CABRAL PINTO que “perante a contingência histórica da categoria ética da legitimidade, e perante o dado irrefutável da permanência desta crença em toda a ordem de domínio “legítima”, pode aduzir-se, como o fazem, por exemplo, Duverger e Jouvenel, que a legitimidade não vai além de um sistema de crenças, não havendo poderes legítimos em si, mas apenas poderes que se julgam legítimos”(PINTO, 1994, pág. 22). [60](BONAVIDES, 2001, pág. 125). [61](LIMA VAZ, 2002, pág. 251). [62]Lei de Introdução do Código civil Brasileiro – Decreto-Lei n. 4.657/42 – “art. 1º – Salvo disposição contrária, a lei começa a vigorar em todo o País 45 (quarenta e cinco) dias depois de oficialmente publicada”. Art. 6º “A Lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.” [63]As alterações processadas no judiciário, com a adoção da súmula vinculante, refletem, numa ótica histórica, a crise da modernidade, evidenciada na dificuldade de processamento da dialética da eticidade, dada as dificuldades existentes, numa sociedade individualista, de se proceder à mediação entre indivíduo-família, família-sociedade civil e sociedade civil-Estado. LIMA VAZ adverte que “os tempos pós-hegelianos assistiram à hipertrofia da estrutura binária indivíduo-sociedade, seja na forma de uma exacerbação do individualismo, seja na cisão cada vez mais profunda entre sociedade civil e Estado, este arrastado pela dialética da acumulação do poder, aquela pela dialética da satisfação cumulativa de necessidades sempre novas”. (LIMA VAZ, 2002, pág. 175). [64]“A associação do poder com a força é, por sua vez, um fato universal e natural, e aforça se exprime primeiramente como violência. A sociedade política se apresenta exatamente como o intento de se desvincular a necessidade natural da associação e a utilidade comum dela resultante do exercício do poder como força ou como violência, e assumi-las na esfera legitimadora da lei e do Direito. Esse intento virá a concretizar-se historicamente na invenção da polis como Estado onde o poder é deferido à lei ou à constituição (politéia)”. (LIMA VAZ, 2002, pág. 206). [65]A respeito da retratação, no direito, do efeito normativo produzido pela política, e da continuidade da atividade política após fixação da ordem constitucional, assevera DELGADO que “é equívoco se aferir uma dissintonia inconciliável entre norma jurídica e conduta política. A primeira é resultado da segunda, consumação de uma ação política bem sucedida, que passa a estabelecer um parâmetro para as condutas políticas subseqüentes. Modernamente, a política, portanto, se desenvolve, em geral (a não se situações revolucionárias e de crise política aguda), em um contexto normativo pré-estabelecido, que traduz o quadro político até então predominante, na medida em que o Direito é a afirmação de um processo político anterior. Desse modo, a cão política se desenvolve no estuário de uma determinada normatividade, embora seja o conduto hábil a alterar esse mesmo estuário, invalidando-o, inclusive”. (DELGADO, 1993, pág. 58). [66]“A dialética particular-universal-singular desdobra-se no campo da existência individual como circularidade dialética do ético e no campo da existência social como circularidade dialética do político. Mas é preciso convir que nem todas as concepções do homem logram articular corretamente essa dialética, e é permitido supor que a inadequação de algumas dessas concepções às exigências conceptuais que se manifestam na analogia entre o ético e o político seja um dos problemas fundamentais do pensamento político contemporâneo”. (LIMA VAZ, 2002, pág. 210).