15 de janeiro de 2021

Justiça de Portugal deve regulamentar sentença oral

José Eduardo de Resende Chaves Júnior

O Ministério da Justiça de Portugal anuncia uma importante reforma no processo penal de seu país, reforma que irá permitir a prolação de sentenças orais, sem redução a termo escrito, em causas de menor complexidade, nos autos do processo eletrônico. Existem inúmeros estudos comprovando que os mecanismos de racionalidade e argumentação da linguagem escrita são bem diferentes da linguagem oral. A linguagem escrita é mais descritiva e a oral é mais performática. Para entender isso melhor, basta pensar no desastre que seria a encenação de um romance escrito sem a transposição para uma linguagem própria para o teatro, para uma linguagem falada.

Vale lembrar que o autor da peça, ao redigi-la, não esgota os recursos argumentativos e dramáticos. Um bom ator, com sua performance, complementa bem e até transcende os limites escritos da peça teatral. Quando o juiz profere uma sentença em audiência, acaba, em face do princípio da escritura, tendo de transcrever para a linguagem escrita a sentença proferida oralmente. Em outras palavras, ele acaba “ditando” uma sentença, ao invés de “proferi-la”. No dicionário, “proferir” significa “dizer em voz alta”. Sentença, etimologicamente, como se sabe, vem de “sentir” e não de “ditar”. No processo eletrônico, a sentença pode ser captada em sua pura verbalidade oral e gestual. Assim, o processo eletrônico permite que o juiz abandone o costume de apenas ditar, para, efetivamente, passar a proferir sentenças. E ao proferir uma sentença pode-se lançar mão de outros recursos argumentativos que a linguagem escrita não permite. Por meio da linguagem oral é possível ser mais direto e objetivo, inclusive mais conciso. As provas podem ser exibidas, mostradas e não apenas descritas pelo juiz.

A oralidade permite, pois, encenar uma sentença e não apenas de ditá-la ou escrevê-la. Como o arquivo eletrônico permite não só voz, como também imagem, e não apenas imagem, senão imagem-movimento (Bergson), ou seja, admite um arquivo de vídeo, pode-se lançar mão de todos os recursos de uma performance teatral-cinematográfica para proferir, para dizer em voz alta a sentença. Isso pode parecer irrelevante à primeira vista, mas isso muda tudo. O processo é um jogo argumentativo e de estratégia. Todas as estratégias são traçadas em se considerando o meio; se mudamos o meio, da mídia papel para o meio eletrônico, mudam-se as estratégias evidentemente. É bom lembrar que o juiz — e não apenas os advogados — traça também suas estratégias argumentativas.

Essa mudança da sentença escrita, para a sentença oral é mais profunda que pensamos. Mudamos, como dizia o papa da comunicação canadense, Marshall McLuhan, para um meio mais quente, o oral-eletrônico. O papel, no sentido utilizado por McLuhan, é um meio mais frio, ou seja, é uma mídia que fornece menos informações ao receptor. Mas, ao contrário do que pregava McLuhan, o meio mais quente pressupõe maior participação. Pelo menos na hipótese do processo eletrônico, ele permitirá uma maior participação das partes e advogados. O processo eletrônico tende a ser mais participativo e interativo.

Essa maior participação e interatividade acaba tendo reflexos profundos também na fundamentação dos julgados. Os fundamentos são, sim, condicionados também pelo ‘meio’, pela mídia em que são expressos e veiculados. Se não temos meios de provar ou demonstrar os fundamentos, eles acabam ficando no vazio. Os fundamentos são indissociáveis dos meios. O meio é a mensagem, o meio é uma extensão do ser humano, já dizia McLuhan. Essa extensão do ser humano não é neutra. Ela acaba condicionando e modificando a forma de estar no mundo e de pensar do ser humano. Os meios de transportes — que também são extensões do homem — mudaram o mundo. O homem que se deslocava apenas com os pés é muito diferente do homem que pode usar o avião.
Os fundamentos não são ideias puras, essências. São conexões, são ligações entre fatos, coisas e pensamentos. Ligações são meios. Os fundamentos da cultura do papel, da escrita, da galáxia de Gutemberg (McLuhan) são diferentes dos fundamentos da era eletrônica, da cultura oral, performática e conectada.

Os juristas perdemos muito tempo com a tentativa de desenvolver um teoria da argumentação jurídica, similar à lógica formal, uma lógica claudicante. Como nos ensinou Perelman, que, além de jurista, era lógico-matemático, com doutorado sobre o matemático Frege, na lógica jurídica o decisivo é a determinação das premissas — o fato e a norma a ser aplicada. O silogismo jurídico, a partir da determinação das premissas é extremamente simples. Precisamos desenvolver uma nova teoria da argumentação jurídica, mas de outra ordem, levando em consideração, não a abstração da lógica formal, mas a concretude do ‘meio’, da mídia em que a argumentação é apresentada e desenvolvida. Abstrair a argumentação do meio é o primeiro passo para tornar tudo teórico e artificial. O filósofo do pergaminho é muito diferente do filósofo em rede.

O processo eletrônico vai desencadear uma revolução performática no processo judicial. Quanto mais cedo os juristas atentarem para isso, mais cedo poderão contribuir para que essa revolução se dirija para o caminho certo. Do contrário, se continuarem a achar que o computador é apenas uma máquina de escrever com mais recursos, o processo eletrônico será reduzido a mero processo escaneado e, com isso, perderemos a oportunidade histórica de dar um choque — tão prometido, quanto diferido — de efetividade ao processo judicial.

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