Ney Stany Morais Maranhão.
Por que aplicar a responsabilidade civil objetiva pelo risco da atividade nos acidentes laborais, mesmo quando a Constituição Federal, expressamente, fixa a responsabilidade civil subjetiva do empregador para tais situações?
1. Introdução Sejamos diretos: afinal de contas, o que nos autorizaria aplicar a responsabilidade civil objetiva pelo risco da atividade (CC, artigo 927, parágrafo único [01]), no âmbito dos acidentes laborais, mesmo sendo sabedores que a Constituição Federal, expressamente, fixa a responsabilidade civil subjetiva do empregador para tais situações (artigo 7º, inciso XXVIII [02])? Esses preceitos são verdadeiramente inconciliáveis? Tais são questionamentos que trazem à baila uma das mais polêmicas discussões jurídicas da contemporaneidade.
Nesta breve reflexão, gostaria de frisar, em meio a essa acirrada polêmica, apenas um enfoque da coisa, uma ótica específica, que, de algum modo, propicia que se enxergue aquilo que, a meu ver, representa o genuíno sentido do referido preceito constitucional, demonstrando, ainda, por via de consequência, que essa é uma das disposições normativas mais mal compreendidas do ordenamento jurídico pátrio.
Meu propósito será o de pontuar um viés hermenêutico que tem o condão deretirar qualquer obstáculo para a atual aplicação, no âmbito da realidade acidentária laboral, daquela vanguardeira cláusula de responsabilidade civil objetiva pelo risco da atividade, isso sem qualquer afronta àquele comando constitucional. Muito pelo contrário, a conclusão que propugno até provará que, em assim praticando, o operador do Direito do Trabalho estará mesmo dando concretude aos mais elevados anseios constitucionais, inclusive dando continuidade a um quase imperceptível fluxo protetivo que a história evidencia e a própria Constituição Federal, captando-o, longe de desejar rompê-lo, em verdade fomentou a sua contínua propagação. Vejamos.
2. Teoria geral da responsabilidade civil: rápidas pinceladas sobre a contundente transição de paradigmas hoje vivenciada
Hodiernamente, não há como tratar de responsabilidade civil sem ter uma mínima noção acerca da iniludível mudança de paradigmas que tem vigorado nesse fantástico campo do conhecimento. Verdadeiramente, as transformações, por aqui, têm sido mesmo viscerais.
Quando centramos nosso foco no paradigma clássico da responsabilidade civil, a primeira coisa que vem à mente é a relevante circunstância de que sua base normativa precípua era o Código Civil. O ponto de vista, portanto, era infraconstitucional, com ênfase no valor liberdade. De fato, como expressão do ideário liberal, a preocupação maior do ordenamento jurídico de então estava em conferir livre trânsito aos particulares imersos na sociedade, reprimindo tão-somente aqueles que, por algum motivo, viessem a abusar dessa portentosa liberdade legalmente fomentada. Logo, à época, o pressuposto de qualquer indenização era o dano ilícito. Corolário de uma ótica estritamente patrimonial, acentuava-se, nesse contexto, a tutela jurídica da propriedade, exsurgindo como critério legitimador do dever de reparar a culpa – materialização jurídica daquele abuso de liberdade. Percebe-se, portanto, que, no fundo, toda essa engrenagem jurídica de reparabilidade existia justamente para prestar clara devoção à figura do ofensor, mais precisamente quanto à possível reprovabilidade de sua conduta.
Atualmente, no âmbito do paradigma contemporâneo da responsabilidade civil, o cenário da reparação de danos se transmuda sobremaneira. A começar por sua base normativa, que passa a ser a Constituição. Excelente transição, já que o ponto de vista, agora, parte dos nobres ares constitucionais. O valor preponderante, nessa atual formatação, é a solidariedade. Naturalmente, a ótica passa a ser eminentemente existencial, porquanto seu alvo é a tutela jurídica da dignidade da pessoa humana, despontando como critério legitimador o risco. Prescinde-se do dano ilícito. Nestes novos tempos, o que importa é refrear a existência do chamado dano injusto, evitando que pessoas inocentes suportem os efeitos drásticos de lesões para cuja existência em nada contribuíram, mas cuja ocorrência é propiciada pelos riscos naturalmente suscitados pelo exercício de uma atividade lícita. Infere-se que o sistema, à luz desse novel paradigma, está todo ele se inclinando em direção à vítima, mais precisamente quanto à efetiva reparabilidade de seu dano.
Eis, então, nesse quadro, algumas rápidas pinceladas sobre a moldura que tem sido construída nos últimos tempos, no que respeita à teoria da reparação de danos. E, de minha parte, reputo que a compreensão desse novo tempo é fator primordial para a escorreita assimilação daquilo que pretendemos gizar mais à frente.
3. Responsabilidade civil objetiva e a realidade juslaboral: sintonizando-se com a tendência normativa de cada vez mais ampla proteção da vítima Quando se estuda o raio de alcance normativo do artigo 7º, inciso XXVIII, da Constituição Federal, regra geral o ponto de concentração se cerra na própria literalidade desse dispositivo, em si mesmo considerado. Fechando outras possibilidades, grande parte dos intérpretes pretende extrair dele – e somente dele – a grande razão de sua existência. E quando optamos por nos valer dessa ótica estreita, a consequência natural é que assimilemos, da mesma forma, uma visão míope da realidade.
Não tenho qualquer dúvida em afirmar que tal dispositivo constitucional, quando analisado à luz de uma interpretação meramente gramatical, certamente nos conduzirá à tese da inaplicabilidade de qualquer outro preceito que, contrariando sua dicção, firme responsabilidade objetiva do empregador pelos danos causados a empregado, por força de acidentes de trabalho.
Daí o porquê de, aqui, tentar lançar algum estímulo a que se estenda o raio de alcance de nossa visão, vendo para bem além da aparência das coisas. Proponho, com isso, que nossos limites de compreensão sejam dilatados, para que, através de um rápido mergulho na história, passemos a usufruir de um ponto de vista, quem sabe, bem mais apurado e consentâneo com a verdade dos fatos que circundam o objeto de nossa reflexão.
Nesse afã, o pressuposto do meu raciocínio está no reconhecimento de um fato, quase sempre desprezado nesse relevante debate. Refiro-me à histórica tendência normativa de cada vez mais ampla proteção da vítima, seja no que refere à teoria da reparação de danos, como um todo, seja no que concerne à responsabilidade civil do empregador, em particular.
Perceba-se que, no início de tudo, o Decreto n. 24.637/1934, em seu artigo 12, expressamente isentava o empregador de qualquer responsabilidade civil no tocante a danos ocorridos a seus empregados, no ensejo de acidentes de trabalho. Ou seja: o primeiro regramento legal atinente ao tema, surgido na longínqua década de 30 do século passado, pontuava a incrível regra de que o empregador estava inteiramente abonado de qualquer dever de reparação no âmbito da esfera cível. Bastava aquela módica indenização acidentária de então. Não havia qualquer preocupação na busca de uma reparação plena, integral, da vítima. Imperava, assim, na esfera cível, a irresponsabilidade do empregador.
Um pouco mais de tempo e adveio nova disposição jurídica cuidando de tão delicada questão. Trata-se do Decreto n. 7.036/1944, cujo texto de seu artigo 31 inaugurou a responsabilidade do empregador, porém apenas quando existente a estreita hipótese do dolo. De qualquer forma, ocorreu um avanço, mesmo que tímido. Afinal, saímos do plano da total irresponsabilidade para a responsabilidade mitigada, ainda que assaz reduzida àqueles casos pontuais, marcados pela escancarada e flagrante intenção patronal de prejudicar o obreiro.
Não durou muito e os aplicadores do Direito, em face da crueldade vivenciada nas relações trabalhistas – cuja marca era o total desrespeito à dignidade humana do trabalhador –, hastearam a importante bandeira da humanização do elo capital-trabalho. Um dos reflexos dessa linha de pensamento foi justamente a defesa de um abrandamento dos rigores da lei, passando a admitir a tese da responsabilidade civil patronal quando da ocorrência da chamada culpa grave, instituto um tanto quanto aproximado à figura do dolo. Nessas situações, no franco desiderato de tutelar a vítima de danos injustos, doutrinadores e magistrados passaram a produzir artigos e peças jurídicas afrontando, de forma acintosa, a letra da lei, trazendo à baila, através de uma artimanha jurídica – a sutil equiparação entre dolo e culpa grave –, incômodas reflexões sobre a necessidade de se avançar um pouco mais na matéria, a ponto de se admitir que também no caso de culpa horrenda, recaísse sobre o empregador o dever de reparar civilmente o trabalhador.
Como certa feita consignou o notável Professor Caio Mário da Silva Pereira, a necessidade de socorrer a vítima, no campo da responsabilidade civil, fez com que doutrina e jurisprudência sempre estivessem marchando adiante dos Códigos… Não à toa a próxima etapa desse quase imperceptível fluir protetivo é exatamente um fruto dessa inteligente assertiva. Em 1963, o Supremo Tribunal Federal, de forma flagrantemente pró-ativa, após intenso debate científico e grandiosa maturação intelectual, ousou publicar sua Súmula 229, que reza: “A indenização acidentária não exclui a do direito comum, em caso de dolo ou culpa grave do empregador” (grifei). Uma corajosa deliberação contra legem, porém marcantemente intra jus. Entre a lei e a justiça, abraçou-se a última. Antes, a irresponsabilidade; depois, a responsabilidade em caso de dolo; agora, inclui-se como fator legitimador do dever de reparar, em afronta à clara disposição legal então vigente, a culpa. Mas não qualquer modalidade de culpa: apenas a culpa grave –pontue-se bem.
Mais de duas décadas se passaram e uma nova ordem constitucional surgiu. Chegamos, enfim, a 1988. Ano da Constituição Cidadã. Chega o momento de imprimir mais um passo nessa crescente trajetória consistente na paulatina maximização do grau de responsabilidade afeto ao patronato, no que respeita aos danos suscitados a seus empregados, nos casos de acidentes de trabalho. A rigor, por eleger a dignidade da pessoa humana como seu epicentro axiológico (artigo 1º, III), lastreando-se na solidariedade como um de seus vetores de comportamento (artigo 3º, I), outro rumo não poderia se esperar da Carta Constitucional de 1988 senão que, no mínimo, viesse a conferir mais um avanço nesse espectro de contínua proteção da vítima, aqui, mais precisamente, quando travestida da faceta de trabalhador. Era a mais básica expectativa que se poderia nutrir em face de sua elevada carga de preocupação com a dignidade humana e, por consequência, com as vítimas de danos injustos, pessoas que, durante longo e tenebroso inverno, sempre se viram forçadas a assumir, sozinhas, prejuízos para os quais sequer tinham contribuído.
E esse passo avante se materializou com o artigo 7º, inciso XXVIII, da CF/88, quando dispôs serem diretos dos trabalhadores, urbanos e rurais, o “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa” (grifei). Embora, à primeira vista, não pareça, a verdade é que esse texto constitucional representou mais um importantíssimo avanço na teoria da reparação de danos juslaboral.
Note-se, por primeiro, a circunstância de que esse proveitoso regramento jaz no bojo da mais altaneira das esferas de normatização jurídica, a saber, a Constituição Federal, a demonstrar, com isso, o distinto relevo que o assunto tem nutrido para com a sociedade brasileira.
Ademais, o citado dispositivo manteve a boa linha de garantir ao trabalhador, para além da clássica indenização acidentária, prestada pelo órgão previdenciário, também uma indenização civil, arcada pelo ente patronal, mantendo, assim, a construção inaugurada pelo Decreto n. 7.036/1944. Entretanto, foi bem além, ao prever, de modo expresso, que essa responsabilidade se impõe não apenas nos casos de dolo, mas também nos de culpa, no que se aproximou do estágio até então fixado pela Suprema Corte brasileira. Todavia, o preceito constitucional, também aqui, ousou ir bem mais longe, quando, sobrelevando o modelo jurisprudencialmente implantado pelo STF – através de sua Súmula 229 –, estabeleceu que tal dever de reparação estaria legitimado aquando da ocorrência de simples culpa, desta feita sem qualquer qualificativo restritivo. Ou seja: culpa, tout court, pouco importando seu grau. Quer dizer: a Constituição Cidadã, na esteira de seus pilares existenciais, de pleno resguardo da dignidade humana, promoveu um representativo impulso nesse prodigioso fluxo protetivo de crescente tutela dos interesses da vítima, afirmando que para que a reparação patronal pudesse ser exigida, bastava houvesse culpa, ainda que leve ou mínima. Eis, então, o avanço, cujo núcleo é preciso captar.
Pergunto: a Constituição Federal, a norma ápice de nosso sistema jurídico, densificadora das mais valiosas aspirações do povo brasileiro, teria verdadeiramente limitado a responsabilidade civil do empregador aos casos em que este incorre em dolo/culpa? Afinal de contas, teria nossa Carta Constitucional sido rigorosa ou prodigiosa na regência de tão delicado tema? Não haveria mesmo qualquer espaço ou brecha, mínima que seja, no tocante ao assunto, para permitir a assimilação do fator risco, ainda que em caráter meramente excetivo? Infelizmente, grande parte dos arrazoados doutrinários e sentenciais trilham o caminho da Constituição ranzinza, cinzenta, taxativa, partindo da tese que sustenta o intuito indiscutivelmente restritivo da Carta Cidadã.
Mas é aí que está o erro. Creio, piamente, que é exatamente aqui, neste ponto, o âmago do debate, o ponto nodal da discussão. Isso porque tal discurso está assentado em um escancarado equívoco. Qual? Parte-se do pressuposto de que a Constituição Federal de 1988, no artigo 7º, inciso XXVIII, teria restringido o âmbito de responsabilidade do empregador, no que tange aos danos decorrentes de acidentes laborais, quando, na verdade, como vimos há pouco, a Carta Magna ampliou consideravelmente o espectro dessa responsabilidade. Não há como negar: conforme tenho relatado, quanto à dita responsabilidade civil do empregador, a Constituição Federal, no fundo, nunca pretendeu estreitar, mas, sim, alargar seus contornos. Longe de buscar fechar, pretendeu abrir as portas dacrescente reparabilidade, em prol da máxima tutela da vítima. Permitam-me o recurso linguístico: na hora de cuidar dessa questão, nossa Constituição não franziu a testa; ela, ao revés, liberou um largo sorriso…
Por isso, para mim, só é possível uma correta interpretação do inciso XXVIII, do artigo 7º, da CF, se, necessariamente, assimilarmos essa espécie de consideração.
Porém, ainda existe algo mais a considerar. E não se trata de um elemento meramente secundário. Cuida-se, na verdade, de outro fator que reputo como essencial para nossas considerações.
Todos conhecemos a consagrada orientação hermenêutica que assevera que os incisos devem ser lidos à luz da cabeça do dispositivo. Pois bem. O artigo 7º, da Constituição Federal – onde está alojado o já referido inciso XXVIII – possui um caput que é formado por duas regras jurídicas. A primeira anuncia que está estabelecendo um rol de direitos; a segunda, que esse rol deve ser ampliado. A primeira é proclamada em vista do presente; a segunda, em vista do futuro. É patente, portanto, que a enumeração de direitos elencados no artigo 7º da Magna Carta é exemplificativa, afigurando-se flagrantemente numerus apertus. Eis seu texto: “São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais (1ª regra), além de outros que visem à melhoria de sua condição social… (2ª regra)“.
A 2ª regra se erige como um postulado de fomento à crescente construção de posições jurídicas tendentes a otimizar o padrão de vida do trabalhador. O destinatário desse preceito é todo aquele que possa, de alguma forma, contribuir para a elevação da condição social do obreiro. Logo, os instrumentos para efetivação desse comando são múltiplos, passando pelas mãos do legislador, do juiz ou de qualquer outro ente, privado ou público, pessoa física ou jurídica, que, de alguma forma, detenha o condão de participar ou mesmo influenciar, direta ou indiretamente, no contexto empregatício.
Aqui, convenço-me que o Código Civil de 2002, ao estatuir uma cláusula geral de responsabilidade civil objetiva pelo risco da atividade (artigo 927, parágrafo único), trouxe ao cenário jurídico uma disposição altamente útil para esse desiderato de aprimorar a condição social do trabalhador, já que no mundo hodierno há diversas atividades empresariais cuja execução implica natural indução do obreiro a riscos mais acentuados que aqueles suportados pelos demais membros da sociedade. Noutras palavras: ao garantir a plena reparabilidade dos danos ocasionados aos obreiros, decorrentes do risco que sua dinâmica laborativa lhes impõe, por certo esse dispositivo cível se encaixa como uma luva no anseio constitucional de contínuo fomento à melhoria da condição social do trabalhador. Há, portanto, uma íntima conexão técnico-axiológica entre o artigo 7º, caput, da Carta da República, e o artigo 927, parágrafo único, do Código Civil de 2002, claramente lavrada na ambiência do paradigma contemporâneo da responsabilidade civil.
Ao contemplar essa ligação jurídica, exsurge a oportunidade de se ofertar mais um avanço naquele fluxo protetivo do trabalhador, que, como vimos, foi ampliado pelo texto constitucional. O que quero dizer é que nossas disposições constitucionais, quando consideradas com mais vagar, revelam-nos não apenas o objetivo de ampliar o espectro de responsabilidade cível do empregador, diante dos prejuízos ocasionados a seus empregados em acidentes laborais, mas também nos comunicam, expressamente, um estupendo estímulo a produções jurídicas outras que propaguem ainda mais esse fluxo protetivo, em atenção ao comando de se elevar, cada vez mais, ao longo do tempo, a condição social do cidadão trabalhador, enquanto expressão de tutela da sua dignidade humana (CF, artigo 1º, III) e dos valores sociais do trabalho (CF, artigo 1º, IV, artigo 5º, caput, artigo 6º, caput, artigo 170, caput e artigo 193).
Não poderia deixar de aqui mencionar que o artigo 7º, caput, in fine, da Carta da República, representa tão-somente a expressão específica de um comando muito maior, também visualizado no bojo da tessitura constitucional. É algo como uma cláusula específicade fomento ao contínuo processo de avanço das condições sociais de vida. E onde estaria a cláusula geral? Está situada no artigo 5º, § 2º, da Lex Legum, assim vazado: “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição nãoexcluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte” (grifei).
Portanto, ambas incorporam notáveis cláusulas jurídicas que impelem a continuidade desse interessante fluxo normativo tendente à contínua proteção do trabalhador, de modo a legitimar, na atual quadra da história, a assimilação dessa nova proposta legislativa, lastreada, agora, tão-só na ideia de risco, encarado enquanto fator de elevação da condição social obreira.
4. Conclusão Infere-se, portanto, desse quadro, que a Constituição Federal, no tocante ao tema da melhoria das condições de vida das pessoas, nunca esteve fechada, nunca contingenciou, nunca se retraiu, senão que, ao revés, estimulou o contínuo processo criação de novas situações jurídicas ou mesmo novas disposições legais, desde que sua essência esteja voltada para a elevação do patamar social do homem trabalhador.
Ora, quando partimos desse plano e fitamos a questão debaixo dessa luz, rompe-se, por completo, aquele tormentoso empecilho dogmático tão comumente ventilado para negar aplicação, ainda que em caráter excetivo, a qualquer outra disposição legal que imponha responsabilidade civil objetiva ao patronato, como aquela constante do artigo 927, parágrafo único, do Código Civil vigente. Verdadeiramente, se, no específico desse tema, propalarmos essa visão algo que ampliativa das motivações constitucionais, em detrimento da aparente feição restritiva de sua expressão gramatical, então teremos descortinada, diante de nossos olhos científicos, uma bela e larga estrada cuja direção conduz para a crescente preocupação com a vítima e a gradual potencialização da integral reparabilidade de seus danos. Chegou o momento de despertar, pois é nesse sentido que os ventos há muito andam soprando…
Aplicar no âmbito juslaboral a responsabilidade civil objetiva pelo risco da atividade, tal qual constante do artigo 927, parágrafo único, do CC, não importa em afronta ao texto constitucional. Muito pelo contrário, representa o cumprimento de suas metas, o atendimento de seus anseios. Não vai de encontro, mas ao encontro do artigo 7º, XXVIII, da Carta da República. Aliás, não só desse dispositivo, mas também do caput do artigo 7º, do artigo 5º, § 2º, e quantos mais outros tantos se queira pinçar e que, ontologicamente, destinam-se a melhorar a condição humana, razão de ser do Direito, do Estado e da própria sociedade. Enfim, se levamos a Constituição Federal e sua força normativa a sério, essa aplicabilidade nem mesmo constitui uma opção; é uma verdadeira obrigação.
O que defendi não é inédito. Grandes doutrinadores já o destacaram. Incomoda-me, porém, a falta de eco científico desse argumento. Daí o porquê de sublinhá-lo, neste específico arrazoado.
Pondero, por fim, que quando centramos nossa vista na literalidade do artigo 7º, inciso XXVIII, da Magna Carta, ficamos em um vale, bloqueados, sem ter para onde ir. Mas, quando nos alçamos a um campo de visão mais amplo, fitando a história naquilo que ela nos tem oferecido, nosso horizonte se amplia e entrevemos melhor os enormes desafios que o futuro nos impõe e os valiosos instrumentos que o Direito nos fornece.
Dizem que recordar é viver.
Aqui, no nosso caso, recordar também é interpretar.
Notas CC, artigo 927, parágrafo único: “Haverá obrigação de reparar o dano, independentemente de culpa, nos casos especificados em lei, ou quando a atividade normalmente desenvolvida pelo autor do dano implicar, por sua natureza, risco para os direitos de outrem” (grifei). CF, artigo 7º, XXVIII: “Art. 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social…” XXVIII – “seguro contra acidentes de trabalho, a cargo do empregador, sem excluir a indenização a que este está obrigado, quando incorrer em dolo ou culpa” (grifei). Sobre o autor ·Ney Stany Morais Maranhão Juiz Federal do Trabalho Substituto (TRT 8a Região). Graduado e Mestre em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Professor do Curso de Direito da Faculdade do Pará (FAP). Professor Colaborador da Escola Judicial do TRT da 8a Região.