Marcelo José Ferlin D’Ambroso
Quem tem medo de comunismo?
O movimento pré-golpe de 1964, em suas diversas manifestações, como a “marcha da família com Deus pela liberdade”, e os seguintes anos de chumbo da ditadura militar brasileira com doutrinação nas escolas, falta de liberdade de imprensa, censura etc., serviram para subjetivar as pessoas a acreditar em mentiras estapafúrdias do tipo “comunista come criancinha”, ou que na extinta União Soviética não existia liberdade e outras barbaridades falaciosas.
Atualmente, no Brasil de 2021 as pessoas recebem doutrinação ideológica pelas redes sociais para acreditar que a vida em Cuba é horrível, que o Brasil corre o “risco de se tornar uma Venezuela se a esquerda ganhar as eleições” e inúmeros outros embustes falaciosos do mesmo gênero – ou seja, comida requentada e com mofo da ditadura -, provando que o povo continua a ser iludido tanto ontem quanto hoje. Tudo disseminado pelas redes sociais e aparelhos de ultraneoliberalismo, repetidos ao infinito para que as pessoas nem sequer pensem em questionar a desinformação que recebem.
Essa estratégia é uma forma de guerra híbrida, a guerra não convencional, que mina a democracia e as instituições de um país, especialmente através de fake-news, desinformação, falsas narrativas, negacionismo, desconstrução da história e da ciência, ciberguerra etc. Ou seja, quanto mais confusão e ignorância for entregue ao povo, melhor. O objetivo do poder econômico é subjetivar as pessoas para acreditar que o mundo capitalista é a única alternativa , desviando a atenção do fato de que o capitalismo financeiro das últimas décadas de hegemonia do neoliberalismo fez com que o nível de desigualdade social retornasse, em pleno século XXI, ao mesmo patamar do século XVIII, do período pré revolução francesa. A toda evidência portanto, o capitalismo financeiro ou monopolista, transformado hoje no capitalismo do 1% (em que 1% das pessoas detêm mais riqueza que os 99% restantes) deseja evitar que haja uma nova revolução popular contra a situação de profunda injustiça social que vivemos.
Por isso mesmo, o título deste texto tem a função de chamar a atenção para algo que escapa da percepção das pessoas. A partir de um pequeno exemplo, tomando por parâmetro os shopping centers – os “centros de consumo” da pós modernidade, observemos o que costuma acontecer nas praças de alimentação: nos horários de refeição (especialmente almoço e jantar), sempre há muita fila diante dos restaurantes, bares e lanchonetes. A razão é simples, a fila não incomoda as pessoas , todos os indivíduos ficam na fila ritualística e pacientemente aguardando a vez de fazer um pedido para comer uma comida padronizada – o que varia são as tendas (negócios) de fast-food, ofertando sempre mais do mesmo. Troca-se de cidade, troca-se de shopping center, inobstante, invariavelmente haverá repetição dos mesmos negócios de alimentação, disseminados em todos os lugares do território nacional pelo sistema de franchising. Dependendo a circunstância, haverá um certo glamour ou status (para quem acredita nisso) no consumo de tal ou qual guloseima ou em frequentar determinado negócio.
O mesmo se passa com roupas, eletrodomésticos, supermercados etc. E normalmente as pessoas compram as mesmas coisas, sem muita variação de conteúdo. Convém observar que, para cada produto lançado no mercado, existe, por média, uns dois ou três bem similares, com poucas mudanças de características (apenas para que se diga “diferente”), não sendo raras as vezes em que uma empresa é detentora de várias marcas através das quais muda o logotipo da mercadoria, mas unifica sua base de produção.
É o chamado capitalismo monopolista: poucas empresas (grandes corporações, bancos e instituições financeiras) sobretudo provenientes de países ricos (que se industrializaram primeiro), vão tomando conta do mercado, comprando empresas menores, locais, e uniformizando a produção a nível global. O controle se dá desde os meios de produção (com o domínio de todas as etapas) até a distribuição das mercadorias. Esta realidade hegemônica é bem visível: se pensarmos em calçados esportivos, imediatamente surge o nome de algumas marcas mundialmente famosas, do mesmo modo em relação a carros, roupas, celulares, computadores, remédios etc., mercadorias que normalmente as pessoas do mundo capitalista anseiam em adquirir.
Assim, a socialização dos prejuízos e a privatização dos lucros é a marca do capitalismo monopolista: poucos controlam os meios de produção e os objetos de consumo, definindo o que será produzido, preço, quando, como e para que classes sociais serão vendidas as mercadorias. O monopólio é o vertedouro da ganância privada e o discurso de exaltação da liberdade e individualidade vendido à sociedade capitalista é válido apenas para os detentores do grande capital, que recebem os frutos (cifrões monetários), enquanto a maior parte da população fica consumindo produtos de baixa qualidade, com a marca da obsolescência programada (vida útil curta para que as empresas possam sempre revender os mesmos produtos).
Por outro lado, brasileiros e brasileiras são subjetivadxs a acreditar que os EUA, país do capitalismo levado ao cubo, é o referente para o “desenvolvimento” da nação, afinal, tudo lá é barato e todas as pessoas têm muita “liberdade”. Efetivamente, quem nunca foi aos Estados Unidos pode ser levado a crer em conto de fadas, coelho da Páscoa, Papai Noel etc. E para quem foi lá e se restringiu ao circuito Miami, Orlando, Disney World, Nova Iorque, Las Vegas etc., de férias, desfrutando de um período de delírio de consumismo e deleite e adrenalina em parques de diversões (de crianças – a Disney-, e de adultos, Las Vegas, neste caso preferencialmente driving a fast car!), certamente não prestou atenção a um fato simples: em cada bairro das cidades estadunidenses, com pouquíssimas variações, os mesmos negócios se repetem: para comprar, Sears, Walmart, Walgreens, Ross, Best Buy, Marshalls, Target e Super Target, Dollar Tree etc., e para comer, KFC, Starbucks, Dunkin’Donuts, Taco Bell e, é claro (of course!), McDonald’s and other famous fast-foods. Mas não é só: junto com o pacote take and go (milk shake e batatas fritas com muito ketch-up), é possível cruzar a Golden Gate, em São Francisco, por míseros oito dólares (mas o lanche não está incluso)! É isso mesmo! E considerando que uma vez que tenhas cruzado a ponte, terás de voltar por ela por mais 8 dólares, a simples travessia de três quilômetros terá custado a “bagatela” de 16 dólares ou R$80,00! Por outras palavras, para ter liberdade nos EUA, é necessário ter dinheiro, sem dinheiro não há liberdade nem para cruzar uma ponte. O país da “liberdade” super fiscaliza seus cidadãos e cidadãs o tempo todo: cruzar uma rua fora da faixa de pedestre (ainda que a cidade esteja deserta) poderá custar uma multa, mas uma multinacional pode, impunemente, discriminar o trabalho das mulheres , por exemplo, e nada sofrer. A liberdade é para os detentores dos cifrões. E no mundo real, a verdade é que sem money no Big Brother, as pessoas estarão confinadas ao bairro e tendo de respeitar os estreitos limites definidos pelo Estado capitalista e pela “iniciativa privada” (leia-se grande capital) para a vida coletiva. Isso enquanto por lá não resolvem privatizar o ar, pois mais adiante talvez possa ser também necessário literalmente pagar para viver o American nigthmare (antigo American dream).
Mas, voltando ao assunto, estamos perfeitamente adaptados ao comunismo: vivemos em condomínios, compartilhando playgrounds residenciais (em geral, piscinas, parquinhos, salão de festas, e, nas construções do momento, cinema, espaço gourmet, rooftop, espaço fitness indoor e outdoor, pet place, bicicletário and other amenities), em apertados e caríssimos 50m2 para uma família tipo (and counting down…). Respeitamos as filas para entrar em lojas e consumir produtos repetidos aos milhares, comer comida padronizada e vestirmos um mesmo padrão de moda decidido pelas grandes marcas ou por grandes magazines. Para quem imaginava ter a prometida liberdade e individualidade no regime capitalista, hoje possui a doce ilusão de liberdade (escolher mais do mesmo, comer comida padrão, vestir-se como todos os demais, fazer fila, morar coletivamente etc., e viver sempre preocupado em render e trabalhar mais). O que muda é que no capitalismo o lucro e as decisões são feitas por meia dúzia de privilegiados detentores de capital, enquanto no comunismo se beneficia a coletividade e o povo é quem toma as decisões que afetam a vida coletiva. Ora, inequivocamente, a democracia não está no regime capitalista.
Ou seja, o imaginário “pesadelo na terra” que o comunismo ofereceria às pessoas, segundo os golpistas de 64 e os aparelhos de ideologia que se espalharam na época e que foram requentados no golpe de 2016 e nos últimos tempos de ultraneoliberalismo, não está em Cuba nem na extinta União Soviética, está espalhado em todos os países de regime capitalista como modelo social padrão. Ora, na grande tribo capitalista, os costumes tribais de agir, vestir e consumir mais do mesmo estão amplamente estandarizados e incorporados no way of life de cada dia (moda, comida, música, desejo, televisão, os likes das redes sociais, maratonar séries do momento, ver episódios do Big Brother Brazil e suas variantes etc.).
O império capitalista necessita que a produção e a reprodução da vida se dê conforme os padrões desejados à lucratividade alheia – de poucos, conforme a lex mercatoria e a “mão invisível do mercado”, que regulam tudo segundo a “meritocracia” e a avaliação econômica de todos os âmbitos humanos pela lógica de custo e benefício. Os losers (perdedorxs, fracassadxs) que não conseguiram vencer e acumular capital devem implorar, no “mercado de trabalho”, para obter uma ocupação e trabalhar sem direitos, no regime de neoescravidão do Século XXI, o governo dos algoritmos no chamado capitalismo de plataforma ou uberização. Por outras palavras, na escravidão havia a submissão pela força e o mercado de escravos, na neoescravidão há submissão das pessoas pela ameaça à sobrevivência, por subjetivação (através da figura do momento, o “MEI – microempreendedor individual”) e algoritmos, ou seja, tudo é muito modernoso e dissimulado para que não se perceba.
Mas se alguém ainda tem medo do comunismo, eu diria, não te preocupa, o máximo que vai acontecer é ter garantia de teto e comida para todas e todos, saúde pública com dignidade, educação de qualidade. Ninguém passará fome. Ninguém ficará ao desabrigo. Os políticos não serão comprados nem as leis encomendadas por empresas e bancos. Democraticamente o povo decidirá se quer produzir um Iphone 34x pro max, ou se quer desenvolver cura para o câncer. Também se decidirá se os esforços coletivos serão otimizados para produzir uma Ferrari para meia dúzia desfilar ou para produzir vacinas gratuitas que garantam maior expectativa de vida a toda a população.
No entanto, no ritmo de subjetivação imbecilizante que andamos, talvez, em futuro bem próximo, o Brasil terá o inglês comercial por língua oficial e muita gente lutará para trabalhar nas multinacionais estadunidenses que transformarão o território nacional no maior parque de diversões das Américas para empresas (abundância de adrenalina para CEO’s desenvolverem novas técnicas de extração de recursos naturais e exploração de mão-de-obra barata a custo quase zero). Nas moradias e carros – para quem ainda tiver esses bens, pois a classe média deixará de existir -, certamente haverá uma bandeira dos EUA e outra de Israel (esta significando para as subjetividades do precariado pós moderno, “os valores tradicionais da família judaico-cristã” – ??). O trabalho, a comida e a roupa serão comuns e iguais para todxs, os direitos inexistentes, a religião neopentecostal o ópio do povo, a política será uma teocracia bem ditatorial ao estilo The Handmaid’s Tale e o lucro será do Big Brother. Tudo literalmente para inglês ver. Enfim, não precisamos viajar, a disneylândia é aqui!
[1] O uso exacerbado do inglês, neste texto, é proposital, para mostrar como estamos incorporando bem o idioma imperial.
[2] Desembargador do Trabalho (TRT da 4ª Região – Porto Alegre – RS), ex-Procurador do Trabalho, ex-Presidente Fundador e atual Presidente do IPEATRA (Instituto de Pesquisas e Estudos Avançados da Magistratura e do Ministério Público do Trabalho), Vice-Presidente de Finanças da UIJ – União Iberoamericana de Juízes, membro da AJD (Associação Juízes para a Democracia), Doutorando em Estudos Avançados em Direitos Humanos (Universidad Carlos III de Madrid, Espanha) e Ciências Jurídicas (Universidad Social del Museo Social Argentino), Mestre em Direito Penal Econômico (Universidad Internacional de La Rioja, Espanha) e em Direitos Humanos (Universidad Pablo de Olavide, Espanha); Especialista em Direitos Humanos, Jurisdição Social e Relações Laborais; Conselheiro da Escola Judicial do TRT4; Coordenador do Grupo de Estudos de Filosofia do Direito da EJUD4; Professor convidado de pós graduação em diversas Universidades, ministrando as disciplinas de Direito Coletivo do Trabalho e Sindicalismo, Direito e Processo do Trabalho, Direitos Humanos.
[3] O famoso TINA – there is no alternative, de Margaret Thatcher, a dama de ferro da Inglaterra, ao pregar as políticas neoliberais.
[4] Faz lembrar a música da banda Capital Inicial, da década de 80, intitulada “Autoridades”, de autoria de Dinho Ouro Preto, Loro Jones, Bozzo Barretti, Flávio Lemos e Fê Lemos, que já denunciava que “a fila não incomoda”.
[5] Em referência ao caso do Walmart, que respondeu a uma ação coletiva por discriminação sexual e obteve decisão favorável da Suprema Corte dos EUA.
[6] Série também conhecida no Brasil como o “Conto da Aia”, baseada no romance distópico da canadense Margaret Atwood, que a escreveu tendo por base episódios da ditadura militar argentina (sequestro de bebês de mulheres presas pelo regime) e movimentos conservadores nos EUA.